Na frigideira da Tia Zé:  mulheres trabalhadoras do pós-abolição

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Homem negro, sorriso largo, veste camisa com uma estampa colorida em tons ce azul e amarelo. Ele tem aproximadamente 50 anos, barba curta e grisalha, usa um boné e atrás há uma estante de livros e um porta retratos
Álvaro do Nascimento

Quando ela chegava à casa e procurava o rolo de massa de pastel, revirando o armário da cozinha, sabíamos que a tarde seria deliciosa. A massa não era industrializada, dos meios capitalistas de produção, o desalinho artesanal sobrepunha a perfeição das unidades. 

A farinha de trigo na tigela, misturada com água, óleo e outros produtos era manuseada com amor de tia-avó, para depois ser sovada, esticada pelo rolo de madeira, cortada em várias unidades assimétricas, recheadas e fechadas com as pontas de um garfo com dentes firmes e alinhados. O recheio era sempre de carne-moída, com pedacinhos de ovos cozidos e outros de azeitonas! Mal nos afastávamos da cozinha quando o óleo da frigideira dava o toque final àquela iguaria pela qual salivávamos como glutões e glutonas.

Aquela tia-avó, que dava uma “talagada” de Praianinha e fumava cigarros sem filtro durante as frituras, era Maria José Pereira Caetano, mãe de Lúcio (assim nomeado em homenagem ao pai dela), além de avó de quatro primos e primas amados e amadas que até hoje me brindam com suas existências. Eu e Vitor brincávamos muito e usávamos a criatividade para termos brinquedos imaginários (carros eram latas de 1 litro de óleo soja, fazíamos estradas e túneis em montes de terra que rebocaram minha casa anos depois) – viajávamos por horas e sem celulares.

Nascida, em 1916, no bairro de São Cristóvão, zona portuária e industrial do Rio de Janeiro, ela carregava lemas da sua época que nós, crianças, odiávamos na hora da despedida: “– Já peguei minhas luvas e o meu chapéu!  Crianças, é hora de partir!”. E, assim, partiam ela e meus primos e primas para o bairro de Guadalupe e nós ficávamos em Turiaçu, ansiosos pela próxima visita.

O curioso de tudo isso é que mal sabíamos que aquela Tia Zé era o símbolo de uma história intensa, repleta de desafios tão comuns, mas desiguais, injustos e sofridos por muitas mulheres negras do período pós-abolição. 

Seu pai e sua mãe tinham a mesma idade, 43 anos, quando ela nasceu; se haviam sido ambos negros e filhos de escravos, nasceram dois anos após a Lei do Ventre Livre, embora sua mãe Guilhermina dissesse ser indígena de Mangaratiba. Tia Zé não escreveu sua história, a exemplo de Carolina Maria de Jesus, nascida dois anos antes de Tia Zé, mas ela também é a história de tantas Marias, Conceições, Ignácias, Bibianas, Felicianas, Felisbertas…  

Toda a família morou na rua Bella de São João (hoje rua Bela) e na rua da Alegria (atual Prefeito Olímpio de Melo), ruas projetadas, longas e retilíneas, numa cidade de tantas ruas tortas. Elas ainda se encontravam ao final de suas extensões, bem próximas ao mar. E, assim, permaneceram até serem cortadas, na década de 1940, pela Avenida Brasil que liga o Centro até Santa Cruz, o último bairro da cidade do Rio de Janeiro. Mas a alegria estava mais no nome de uma dessas ruas e não na vida de tantas famílias que ali moravam.

Seu pai, Lúcio, sofria de glaucoma e perdeu a visão, quando a família já devia ser extensa: a mãe Guilhermina, os rapazes Fernando (1904) e Jorge (1919), e as meninas Maria Ricarda (1910), Reynalda (1913) e a própria Maria José (1916). Lúcio trabalhava por salários que garantiam morada, alimentos e outras necessidades.  Trabalhadoras e trabalhadores ainda estavam a aproximadamente duas décadas do decreto do presidente Getúlio Vargas que instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho em 1943. 

Sem a proteção a trabalhadores e trabalhadoras, a família não tinha como sobreviver. Foi aí que dona Guilhermina ampliou sua luta cotidiana. Além do marido cego, reaprendendo a locomover-se e a cuidar de si em diferentes espaços da casa, ela passou a lutar para conseguir emprego para ela, filhos e filhas, tamanha era a disparidade entre os salários pagos a homens comparados àqueles oferecidos a mulheres e crianças. Ela foi trabalhar na mesma fábrica que abandonara o marido quando doente. Pediu emprego para ela e as três filhas, Maria José, Reynalda e Maria Ricarda e foi, assim, que seguraram o momento crítico.

Pela memória da filha do seu irmão mais velho, a hoje octogenária Guilhermina Pereira Freitas (possivelmente, seu primeiro nome homenageava sua avó), Tia Zé, suas irmãs Reynalda, Maria Ricarda e sua mãe, D. Guilhermina, após a cegueira de Lúcio, trabalharam na Fábrica São Luiz Durão de “fiação, tecelagem e sacaria de juta para confecção de sacos de aniagem para café, mamona, cereais, cacau” e outros fins. Eram algumas das 700 funcionárias e funcionários da fábrica, que somava 245 teares, produzindo 20.000 sacas por dia, em 1935.

Imagem 1 - A foto mostra uma fábrica com uma grande máquina de tecelagem com carretéis e linhas
Biblioteca Nacional (RJ) revista Observador Nacional, n. 35, dezembro de 1938.

Tia Zé era sindicalizada no Sindicato dos Trabalhadores, na Indústria de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro, fundado em 1917. O Decreto Lei n.º 1402, de 5 de julho de 1939 (na carteirinha há um claro erro de digitação quando informa o ano) seria incorporado ao decreto que consolidou as leis trabalhistas no Brasil, em 1943, outorgado por Getúlio Vargas no Estado Novo. Pressupunha “um operariado cidadão restrito e regulado”, a fim de melhor controlá-los e controlá-las nas relações de trabalho com seus patrões e o próprio Estado. Essas leis foram muito bem recebidas por boa parte dos trabalhadores e trabalhadoras – não à toa Getúlio era admirado por Guilhermina e sua filha Reynalda. Operárias e operários da fiação já haviam realizado movimentos grevistas, em novembro de 1935, na luta por direitos, alguns conquistados com a CLT e  continuaram em luta mesmo durante o Estado Novo da ditadura de Vargas.

Imagem 2 - Carteira do sindicato dos trabalhadores da industria de fiação e tecelagem do Rio de Janeiro pertencente a Maria José Pereira Caetano, profissão tecelã de 14 de fevereiro de 1944. Fodo de uma mulher negra, jovem, cabelos pretos e compridos, penteados para trás e presos. Ela veste uma blusa escura, quase preta, a imagem é sépia.
Carteira Sindical (coleção particular da família)

Tia Zé casou-se com João Zeferino Caetano, em 1939, cinco anos antes da foto colada à sua carteira de sindicalizada. Seu pai Lúcio havia falecido, como informado em seu registro de casamento. Era um casal jovem, ela com 23 anos e ele somava 25 e já moravam sob o mesmo teto, na já citada rua Bella de São João, n.º 762. O endereço não era distante da fábrica São Luiz Durão, localizada à rua Almirante Mariah. Uma boa caminhada de 10 minutos e poderiam assumir suas atividades laborais.

Essa era uma característica das mulheres da família: casaram-se e/ou nasceram na rua Bela e rua da Alegria em São Cristóvão e iniciaram suas atividades de trabalho nas imediações das residências. Os homens também não estavam tão distantes. Fernando tornou-se motorista de praça e antes fora motorista do cais do porto. Sobre Jorge ainda se exige maiores pesquisas, mas trabalhava na Light como eletricista, cuja sede era na rua Marechal Floriano, necessitando pagar a passagem do bonde da linha São Luiz Durão (o mesmo nome da fábrica), que saía da Praça Marechal Deodoro, passando pelas praias de São Cristóvão e Palmeiras, rua Figueira de Melo, depois a Visconde de Itaúna (destruída para construção da Av. presidente Vargas em 1944) beirando o Canal do Mangue, Campo do Santana, até chegar à Light na rua Marechal Floriano (antiga rua Larga de São Joaquim). Exceção da Tia Zé, as demais tecelãs da família precisavam andar por quase 40 minutos ou pegar algum bonde da linha Alegria, que partia do Largo do Pedregulho, passando por quase toda a rua da Alegria, apeando a rua Bela e nela seguindo até cruzar a rua da fábrica, a Almirante Mariah.

Imagem 3 - Planta da Cidade do Rio de Janeiro de 1910.
Biblioteca Nacional (RJ) “Planta da Cidade do Rio de Janeiro” (1910) […] “organizada e desenhada por Francisco Jaguaribe Gomes de Mattos”.

O casamento de Maria José Caetano não foi o sonho esperado. João a traía com outras mulheres, era charmoso e dirigia carros luxuosos da empresa em que trabalhava. Maria José engravidou de um filho, o Lúcio Caetano, que recebeu o nome do avô falecido. Separada do marido e sem pensão, foi obrigada a trabalhar em diferentes atividades para criar seu filho, lavadeira e quituteira são alguns dos ofícios lembrados por uma das suas sobrinhas em entrevista. 

Mesmo sob tanto trabalho, Maria José tornou-se cada vez mais a Tia Zé, nunca mais se casou ou se apaixonou por alguém. O bairro de São Cristóvão também não conferia facilidades para morar como em outrora, principalmente, após as reformas urbanas, que não pararam como a do prefeito Pereira Passos no início do século XX. A construção da Avenida Brasil valorizou a região com novos prédios e indústrias. E foi no caminho da longuíssima avenida que a família começou a migrar para os subúrbios, exceção feita ao irmão Fernando que se mudou para Vila Isabel com família numerosa. Morava numa casa de cômodos, dividindo espaços da cozinha e banheiros com outras famílias, uma situação que incomodava imensamente a sua esposa, Antônia Pereira, anos depois ele fincou residência em Realengo bem próximo à avenida Brasil. 

Quando irmã de Tia Zé, Maria Ricarda e seu cunhado morreram de tuberculose, no ano de 1950, deixaram cinco filhas que foram espalhadas por casas de família e lá trabalharam como empregadas, tinham 11, 16 e 19 anos; duas ainda eram ainda mais novas. 

Foi aí que Maria José tornou-se a mensageira, a que circulava de casa em casa pela extensa Avenida Brasil visitando as sobrinhas órfãs, irmã e irmãos além de cuidar dos seus netos e netas. Era ela que ligava parentes e familiares às memórias sem esperar ocasiões especiais. Ia, e ponto. E por lá ficava um ou mais dias, sozinha ou com seus netos e netas. Em toda a casa por ela visitada, havia uma garrafa de Praianinha e uma cama para descansar após fritar seus inesquecíveis pastéis.

Toda a luta de mulheres negras como Tia Zé era tão comum nos nossos bairros, que naturalizávamos a exploração delas em nossos quotidianos. E mesmo que erguêssemos nosso olhar ao nível da razão, adultos não respondiam às certeiras questões observadas pelas crianças, que eram proibidas de opinar sobre “temas sensíveis”. O passado e a cor da minha pele, e as dos meus irmãos, irmãs, primas e primos tinham a história da escravidão de seres humanos e da ameaça do racismo como ponto em comum, entendêssemos ou não o que era e é esse mal que nos aflige ainda hoje. Tia Zé e tantas mulheres procuravam nos proteger de todo esse contexto histórico com henê, pente fino e chapa quente no cabelo das meninas, surras se trocássemos a sala de aula pelo futebol na várzea, criatividade e esforço redobrado para agregar valor aos salários acanhados dos nossos pais (catar frutas e legumes “machucados” na hora da xepa, carregar alimentos a pé por quilômetros, vender doces etc.). Era difícil para todas as famílias negras, no entanto, resistir ao universo de informações impressas, radiofônicas e televisivas que abalavam nossas autoestimas. 

Essa história não é exclusiva dessa família: elas se repetiram e se repetem, ainda hoje, nos mais diversos rincões do país. O mais injusto é que não observamos suas histórias, suas lágrimas, suas tristezas e lástimas por tantas violências sofridas, e pouco as cobrimos de afetos. 

Morreu aos 64 anos após lutar por anos contra aquela doença agressiva que lhe ceifou a vida. 

Obrigado por seus pastéis e ensinamentos, querida Tia Zé!

Autobiografia: Sou Álvaro Pereira do Nascimento, carioca, amante da cultura popular, militante na defesa dos Direitos Humanos (antirracista acima de tudo), pai babão do Peri, neto de Maria Ricarda e sobrinho-neto de Maria José. Também sou todo feliz e orgulhoso por ser professor de História, por trabalhar na UFRruralRJ (ao lado de estudantes que me energizam a vida), e ser coordenador de área de História da Capes, Pesquisador de Produtividade 1-D do CNPq e Cientista do Nosso Estado pela Faperj.

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