Martinho Corrêa Vasques (1822-1890): um artista negro em pleno regime escravocrata

Autoria

Luiz Costa-Lima Neto

Foi apenas em 2010-2014, durante minha pesquisa de doutorado em Musicologia na UNIRIO, que encontrei casualmente o ator-cantor-dançarino Martinho Corrêa Vasques (1822-1890), num dos 52 folhetins escritos pelo dramaturgo e músico Luiz Carlos Martins Penna (1815-1848), publicados no Jornal do Commercio em 1846-1847. Por ocasião de um espetáculo no Teatro de São Pedro de Alcântara, o folhetinista fez altos elogios ao artista por sua performance nas árias “da Polca” e “do Mascate italiano”, aplaudindo sua “voz grave, agradável e sonora, seus gestos naturalmente engraçados e sua fisionomia que provocava sempre a hilaridade do público”.

Imagem 1- recorte de jornal no qual encontra-se uma imagem em preto e branco do ator Vasques - homem negro com cabelo preto e curto, olhando para o lado direito e com braços cruzados. Está trajado com um terno preto, blusa branca e gravata borboleta preta.
Martinho Corrêa Vasques (1822-1890). Fonte: Procópio Ferreira. O ator Vasques. MEC/FUNARTE, 1979, p. 55.

Se não fosse pela imagem da Figura 1, dificilmente eu saberia que Martinho era negro. Filho de uma família de poucos recursos, Martinho nasceu livre (ou “ingênuo”) na cidade do Rio de Janeiro, em 1822, ano da Independência do Brasil, quando mais da metade da população carioca era escravizada. Ele tinha nove anos de idade, em 1831, quando o comércio transatlântico de escravizados foi proibido por lei, mas a atividade, muito lucrativa, continuou a ser praticada massivamente, com a conivência criminosa das autoridades. Neste contexto de ilegalidade escancarada, em 1838, o editor e poeta negro Francisco de Paula Brito (1809-1861) promoveu o primeiro espetáculo “em benefício da liberdade de um escravo”. A renda amealhada com a venda de bilhetes se reverteria para a compra da alforria de uma pessoa escravizada, presente no teatro para que o público visse aquele “para cuja liberdade concorre, generoso”. Três anos depois, em 1841, apoiado por Paula Brito, Martinho entrou na companhia dramática do ator e empresário João Caetano dos Santos (1808-1863), a primeira formada por uma maioria de artistas brasileiros. Martinho tinha somente 19 anos de idade, mas tornou-se rapidamente conhecido por seus papéis cômicos, nos quais representava, dançava e cantava lundus, fadinhos, árias, cançonetas e paródias de ópera. 

Figura 2 a - charge intitulada “A Martinhada. Por S…n e Cia. NB. La Mére en permettra la vue a sa fille”, em preto e branco, de três homens. o do canto esquerdo encontra-se ajoelhado com olhando para cima. apresenta um nariz muito grande. Usa terno preto e encontra-se com as mãos juntas como se estivesse rezando. Abaixo dessa figura há a frase “o holeiro em arte de engraxar as botas em público”  No meio há um homem de lado, branco, com nariz bem grande. traja um terno com blazer preto e calça branca e usa uma cartola preta. está segurando uma espécie de seringa e outros objetos não identificados. Abaixo há a frase “O nunca assaz cantado Mascate Italiano”. No canto direito da imagem há um homem barrigudo, com nariz grande e um um grosso bigode. Usa cartola preta casaco preto, parecendo ter alguma patente militar. chapéu grande com penacho em seu topo. usa blusa e calça brancos com espada pendurada. Está de pé e a mão direita está em posição de continência. Abaixo há a frase: “Capitão mata-Mouros!!!”
“A Martinhada”. Fonte: L’Iride Italiana, 15/10/1855.
Figura 2.b - Continuação da charge anterior - homem branco com nariz grande, parecendo um bico, cabelo ralos em posição de dança com as mãos erguidas e trajando uma espécie de batina preta. Abaixo da imagem há a frase: “O noviço na peça moral e instrutiva do mesmo nome”. No lado esquerdo da imagem há um casal dançando. Uma mulher magra e com nariz grande, cabelo preto e preso com vestido à altura dos joelhos. Tras dois buques de flores pequenas em suas mãos. Ela está de lado, voltada à direção de um homem branco, narigudo, com cabelo preto	e calvo. usada colete, caça e blusa brancos. Segura um paletó preto na mão esquerda. usa botas pretas com esporas e está com a mão direita elevada com o indicador apontando para cima. Abaixo da imagem há a frase: “A polka  das rosas”.
“A Martinhada”. Fonte: L’Iride Italiana, 15/10/1855.

As caricaturas publicadas no periódico bilíngue L’Iride Italiana (Figura 2), ilustram as atuações de Martinho na comédia O Noviço, de Martins Penna, no dueto dançado A Polka das Rosas e nas árias cômicas do Capitão Mata-Mouros, Mascate Italiano e Boleeiro. As imagens revelam a versatilidade do artista, o qual, vestido a caráter, cantava, representava e dançava. A frase em francês: “La Mère en permetra la vue a sa fille” (“A mãe permitirá que a sua filha veja”), servia de legenda às caricaturas do periódico, sugerindo que havia algo censurável nas performances de Martinho, provavelmente seu gestual musical afro-negro, que incluía trejeitos considerados “lascivos”, por observadores da época. 

Na época do folhetim de Martins Penna, a companhia dramática de João Caetano estava sediada no pequeno Teatro de São Francisco, com capacidade de abrigar apenas 250 espectadores. O Teatro de São Pedro, por sua vez, podia acomodar mais de 1.200 pessoas e tinha como presidente de sua diretoria o comendador português José Bernardino de Sá (1802-1855) – o maior traficante de escravos do Atlântico Sul na primeira metade do século XIX. Além de estar interessado nas polpudas subvenções estatais para o teatro, o traficante e futuro barão e visconde de Vila Nova do Minho usava o cargo de presidente da diretoria para “fazer a social” e ampliar suas redes de relações, consolidando ainda mais seu enorme poder. 

Martinho atuava como um dos principais artistas nos espetáculos “em benefício de uma liberdade” realizados pela companhia dramática de João Caetano no Teatro de São Francisco. Estes benefícios consistiam não apenas num ato de caridade, mas principalmente, numa estratégia de combate ao tráfico negreiro ilegal e aos traficantes que dominavam a cena cultural a partir do Teatro de São Pedro, estendendo suas ramificações nos poderes político, judiciário e governamental. 

Figura 3 - recorte de jornal em preto e branco que contem o seguinte anúncio: “Segunda-feira de fevereiro de 1849. Benefício para a liberdade de um escravo. A companhia dramática representará a sempre aplaudida comédia em 5 atos e 8 quadros. A Moreninha. Seguir-se-a, pelo Sr. Martinho Corrêa Vasques, a a aria do Mascate italiano. Terminará o espetáculo a bela farsa O Judas em sábado da aleluia. Tendo o generoso Sr. João Caetano dos Santos concedido este benefício, é de esperar que, a imitação deste benfeitor, o respeitável público concorra a este espetáculo, para, com a sua proteção das liberdade  a um ente que será eternamente grato aos seus benfeitores. Os bilhetes vendem-se, por obséquio, no escritório do teatro, e em casa do Sr. Paula Brito, praça da Constituição n. 64. Principiará às 8 e meia horas.”
Anúncio de um “benefício para a liberdade de um escravo”

Os espetáculos “para a liberdade” não acabaram após a Lei Eusébio de Queirós determinar o fim definitivo do tráfico negreiro, em 1850, nem quando Paula Brito e João Caetano faleceram no início dos anos 1860. Na década de 1870, os “benefícios para uma liberdade” experimentam uma espécie de renascimento e voltam a ser apresentados nos teatros, alcançando seu ápice, a partir de 1880, com a campanha abolicionista até o fim da escravidão, em 1888. Martinho Corrêa Vasques foi o artista que durante mais tempo tomou parte destes benefícios teatrais para a liberdade de pessoas escravizadas, de 1844 a 1870, durante 26 anos. Curiosamente, o artista se apresentou quase tanto tempo no papel principal da comédia O noviço, de Martins Penna, de 1853 a 1874, introduzindo suas famosas árias cômicas nos entreatos. É importante notar que o personagem protagonista interpretado por Martinho não tinha nenhuma das características atribuídas à personagem negra oitocentista pela historiografia teatral. Ao invés de levar cascudos, ser domesticável ou lacrimoso, o noviço Carlos possui personalidade altiva e rebelde e, para fugir do Mosteiro de São Bento, onde o internaram contra a sua vontade, travestiu-se de mulher, enganou os frades, a polícia e, por fim, dá uma cabeçada tão forte no Dom Abade que fez o monge dar um salto de trampolim.

Martinho atuou nos principais teatros cariocas e, após a morte de João Caetano, em 1863, viajou apresentando dramas, comédias, lundus, árias cômicas e duetos pelas províncias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco e Bahia – no que, aliás, correu o risco de ser capturado e ilegalmente escravizado, como ocorria com frequência com pessoas negras. Após voltar ao Rio de Janeiro, em 1869, Martinho foi contratado na companhia dramática de Furtado Coelho, sediada no Teatro Ginásio Dramático, atuando em A Baronesa de Caiapó, paródia da opereta La Grande-Duchesse de Gérolstein, (música de Jacques-Offenbach e libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy). De 1871 a 1872, Martinho atuou na mágica A Pera de Satanás (música original de Furtado Coelho e texto de Eduardo Garrido), representando o papel do Rei Caramba XXVII. Por fim, após viagem ao nordeste, o artista ingressou, em 1875, na companhia do ator Guilherme da Silveira, no Teatro de São Pedro de Alcântara. Atuou no drama Noite das Índias (música do compositor e maestro português Ciríaco Cardoso e texto de Jules-Léon de Claranges Lucotte), n’O Drama do povo (texto do escritor português Pinheiro Chagas) e no vaudeville A Corda sensível (música de Francisco de Sá Noronha). 

Esta foi sua despedida dos palcos.  Com as mortes de Paula Brito e João Caetano, Martinho havia perdido a sua base profissional de apoio, vendo a sua situação financeira degringolar de vez em 1864, quando o Banco Souto, onde o artista depositara suas economias, faliu. As experiências posteriores com empresários teatrais gananciosos, por sua vez, lhe trouxeram mais prejuízos. Foi assim que, em 1875, Martinho acabou desistindo do teatro para tornar-se cobrador da Companhia de Seguros Confiança, na qual trabalhou durante quinze anos, antes de vir a falecer, em 1890, com 68 anos incompletos. 

Seu corpo foi sepultado no cemitério São Francisco Xavier, sendo o cortejo acompanhado por amigos, artistas e membros de irmandades religiosas negras. O jornal O Cruzeiro foi um dos poucos periódicos a registrar o falecimento do “ex-artista cômico que tão célebre foi com João Caetano, e com este formava as duas maiores reputações nacionais dramáticas do seu tempo”. Ninguém veio a público lembrar que o falecido ator-cantor-dançarino negro havia contribuído decisivamente para libertar dezenas de homens e mulheres escravizadas, além de transformar o teatro num duradouro espaço de luta antirracista, pressionando as autoridades políticas e governamentais a acabarem com o tráfico negreiro e a escravidão no país. 

Autobiografia: Sou o professor negro que nunca tive. Músico, escorpião, flamenguista e pai do Pedro. Bacharel em Composição, mestre e doutor em Musicologia, pós-doutor em História, musicoterapeuta, professor aposentado nas Escolas Estaduais de Teatro Martins Penna e de Música Villa-Lobos. Pesquisador feliz e cidadão preocupado, acredito piamente em palhaços e sei que a Educação pública, gratuita e de qualidade é a única saída para o Brasil.    

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