Acredito que a Quinta da Boa Vista faz parte da infância da maioria das crianças nascidas e criadas no subúrbio carioca. Eu sou uma delas. Um final de semana ou um feriado com diversão garantida, tinha como morada a Quinta. Em seu imenso gramado, o papelão e as bolas gigantes se tornavam protagonistas do passeio junto com a risada da meninada. Ainda podíamos contar com a figura problemática do zoológico, que para alguém que está começando a descobrir o mundo é uma experiência fantástica poder ver ao vivo seus animais preferidos pela primeira vez. E por último, mas não menos importante, havia ele, o Museu Nacional. A primeira lembrança que tenho de lá na infância era o esqueleto de um dinossauro que fazia parte de uma exposição permanente do museu. Porém, convenhamos, qual criança não fica impressionada com um bicho daquele tamanho?! O colorido das penas que faziam parte dos artefatos da coleção etnográfica me cativava. Saber que uma família de reis, rainhas e princesas já tinha vivido ali também era algo que fazia a Carolzinha se encantar ainda mais por aquele lugar.
Passada a infância e já cursando a faculdade de História, me vi desesperada à procura de um estágio. Não foi preciso pensar muito para conseguir recordar a lembrança da minha meninice. A resposta era evidente, eu precisava ir para um museu. Em mais um passeio para Quinta, em uma atividade externa do museu, consegui entregar meu currículo para alguns de seus funcionários e, para a minha alegria, deu certo! Entre os anos de 2011 e 2014, fui estagiária e bolsista do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional – SEE. Aquele lugar tinha um encanto. Era mágico! Meu antigo chefe sempre dizia que meus olhos brilhavam todas as vezes que mexíamos no acervo. Foi o acervo que me fez escolher o SEE para estagiar. Aqueles objetos me provocavam da mesma forma que um dia provocaram a imaginação da Carolzinha. E essa provocação me incentivava a conhecê-los e estudá-los cada vez mais. Lá tive a oportunidade de trabalhar com pesquisadores e projetos incríveis. E foi nesta oportunidade que descobri a existência e iniciei meus estudos sobre uma das coleções do acervo do SEE, que, na época, contava com aproximadamente 42 mil peças.
O número de objetos era inexato, a conta pairava sobre setenta peças. Entre elas encontravam-se flechas; argolas; tambores; armas; colares; pentes; fetiches; objetos que fazem parte da história da repressão à cultura negra na cidade do Rio de Janeiro do final do século XIX. São coisas que foram retiradas violentamente de seus donos num período em que o Brasil caminhava para a abolição. Estes objetos foram confiscados pela Polícia da Corte, nas chamadas casas de “dar fortuna”, que eram espaços de sociabilidade, solidariedade, construção de identidades e local de prática de ritos e rituais de africanos e afro-brasileiros nas terras cariocas. Na ocasião, as pessoas que estavam presentes eram presas e os objetos apreendidos, na esperança de que esta atitude das autoridades impediria futuras realizações dessas manifestações culturais.
Tal coleção foi nomeada pelas pesquisadoras Mariza Soares e Rachel Lima como Polícia da Corte e recentemente fora citada por Michele Agostinho como Quintino Pacheco. Se fosse eu a nomeá-la, chamaria de Rainha Mandinga. Essa é a nossa personagem. Foi pesquisando sobre a origem desses objetos que eu cheguei à figura do Quintino Pacheco Salles, um africano que, em uma carta ao Imperador, afirmou que estava dançando jongo com seus patrícios em sua casa quando houve uma denúncia falsa. Com isso a polícia bateu lá e apreendeu todos os seus objetos. Na carta, ele ainda diz que tais objetos não eram de feitiçaria e esperava que o Imperador, que, nas palavras dele, era uma pessoa justa, fizesse com que o museu devolvesse suas coisas. A carta estava sob posse do Museu Nacional, então eu tinha a certeza de que Quintino tinha sido ouvido, mas seus objetos tinham voltado para o dono? Aí, eu comecei a procurar sobre o Quintino em vários lugares, no Arquivo Nacional, no Diário Oficial da União, na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, e foi, aí, que me deparei com Leopoldina Jacome da Costa, a Rainha Mandinga. Acredito que os objetos tratados por Quintino na carta eram na verdade pertencentes a ela.
É incrível como um trabalho pode levar a gente para tantos caminhos e fontes que vão se complementando, vão se encaixando, e vão ajudando a gente a contar uma nova versão de determinada história. Nesta ocasião, confesso que eu, como mulher preta, me senti afortunada pela oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a vida de outra mulher preta. E falando em versões de história, agora eu vou contar para vocês a minha versão da história da Rainha Mandinga.
Na Rua Príncipe dos Cajueiros, nº 236, atual Senador Pompeu, no dia 23 de setembro de 1879, houve uma batida policial, após uma denúncia anônima de que ali havia uma casa de “dar fortuna”. Indo ao local, a polícia se depara com cinco neófitas, cinco mulheres negras nuas e de cabeças raspadas. Lá estavam no intuito de se purificarem e ganharem fortuna e quem também estava lá era o senhor Quintino, moço esse, responsável por nos apresentar a história de Leopoldina. Além das pessoas, os policiais também levaram dois cabritos, quatro jabutis, um cesto com crânios e cabeças de cabrito, sete peles desses, argolas de diversos tamanhos, “uma frigideira com búzios grudados a uma substância que parece argamassa e em forma de bolo” (nas palavras do redator), chocalhos de diversos tamanhos e qualidades, búzios em grande quantidade, tambores africanos, colares, um baú com roupas de fantasia e muitos outros objetos que ficaria longo mencionar. A frigideira mencionada era, na verdade, um abebé como esse da imagem, que faz parte da coleção “Rainha Mandinga”:
Após ser levada para a prisão, Leopoldina se apresentou como a sacerdotisa principal do local e se autointitulou como “Ministra e Mãe dos Santos; Chefe da Mandinga e Rainha”. Segundo as páginas do jornal Gazeta de Notícias, ela era livre, preta, fula, gorda, da nação mina jeje, de 45 anos presumíveis e grávida. Destacando a situação e o poder que tinha esta mulher, havia ainda a informação de que 33 súditos de Sua Majestade se apresentaram à polícia para prestar homenagens à Rainha.
As aparições da Leopoldina no jornal não eram muitas. O mesmo jornal que a caracterizava como muito inteligente, desembaraçada, arguciosa e bem falante, fazia questão de ridicularizá-la a cada notícia. O que ela representava para sua comunidade, assim como sua existência incomodavam a boa sociedade da Corte brasileira. Além de ser uma mulher negra e feiticeira, outra coisa causava incômodo nos jornais e na sociedade sobre Leopoldina, seu poder e, principalmente, o fato de se autointitular Rainha, se assumir como realeza ia de encontro ao poder e à supremacia dos monarcas da Corte. O jornal deixava claro que jamais uma mulher africana poderia se autointitular rainha em plena monarquia brasileira. Esta atitude fazia com que ela se nivelasse à família real e tirasse o poder e prestígio deles. O empoderamento da Rainha era uma grande ofensa! Como pode uma pessoa desrespeitar o poder do monarca?
Três dias depois da sua detenção, a Rainha foi mencionada novamente. O delegado Dr. Possolo obrigou a ministra a assinar um termo de bem viver. Essa assinatura não representou só a seguridade da tranquilidade pública, mas a repressão e restrição da liberdade das mulheres negras em exercerem suas práticas. Diante da humilhação de ter suas práticas podadas, temos que reconhecer que, ao assinar, a chefe da mandinga garantiu que o término da sua gravidez fosse mais tranquilo, em liberdade. Aos olhos das autoridades Leopoldina havia se livrado de seu “crime” e não corria o risco de pagar pena. Não sei se foi o fato de ela estar grávida, ou medo, ou espanto gerado pelo número de seus seguidores que para ela foram prestar homenagens na delegacia, mas havia alguma tolerância nesta assinatura. Este ato era também um aviso para todos aqueles que também praticavam este “crime”. Dessa vez, Leopoldina Jacome da Costa estava impune. Contudo, poderia ser processada criminalmente, se o fizesse novamente.
Depois dessa, mais uma menção à Leopoldina. O redator da notícia narrava o que hoje seria nítido. A Rainha sofreu violência só por estar dentro de uma casa com cultos da sua religião, enquanto cartomantes não eram perseguidas. Nas palavras dele, se fosse pela religião, os padres também prometiam indulgências, como o reino do céu. Se fosse por magia, as cartomantes eram tão feiticeiras quanto ela. Talvez fosse por ser uma mulher preta e os outros brancos, estrangeiros e consultados por altas personagens. Hoje entendemos que de fato, foi um episódio racista!
Apesar de todas as violências e preconceitos, Leopoldina resistiu. O caso dela mostra o importante e decisivo papel da mulher na preservação e proteção das práticas, costumes e das identidades negras. Quando foi coagida pelos policiais, a africana fez questão de se posicionar, assumindo total responsabilidade do que acontecia em sua casa. Leopoldina mostrava que uma mulher negra estava à frente daquele lugar. Infelizmente, não consegui encontrar fotos ou mais notícias sobre ela, mas me orgulho de sua coragem. Leopoldina consegue representar todas as mulheres que defendem sua história e sua família e, além disso, ela era Ministra dos Santos, Chefe da Mandinga, Mãe e Rainha!
Autobiografia: Mulher negra, filha da Rosângela, mãe da pet Kiara, portelense, flamenguista, louca por música, viciada em pipoca, historiadora por paixão, auxiliar de escritório por obrigação.