Quem nunca escutou a seguinte frase: “A pesquisa acadêmica nos lança ao isolamento”? De certo, em alguns momentos, nos vemos sozinhos em frente há uma pilha de documentos, que para aquele desavisado, pode ser apenas um amontado de vestígios do passado. Vestígios de um tempo vivido por sujeitos, que de desconhecidos, passam a fazer parte de uma trajetória acadêmica e pessoal. O que nos leva, ao questionamento de outra frase comum nos meios acadêmicos: “O pesquisador deve manter um distanciamento, uma neutralidade, frente ao objeto de pesquisa?”. Evidentemente, que a historiografia, já vêm questionando este tipo de afirmação, uma vez que não podemos nos despir de nossos anseios, interesses e vivências ao produzir ciência.
Hoje me dou conta que as escolhas que fiz em minha trajetória como pesquisadora, mesmo que inconscientemente, têm muito a ver com a história de vida da minha família. Filha de uma copeira nordestina, que, muito jovem, viu no Rio de Janeiro um lugar de fuga para as mazelas que vivia, acabei vendo no serviço doméstico, profissão que ela e suas irmãs desempenharam, um caminho de análise que me segue até hoje.
Em busca das representações dessas trabalhadoras, no final do século XIX e princípios do XX, o jornal O Rio Nu me surgiu como uma fonte frutífera de análise, na qual, o personagem que lhes apresento emerge como um sujeito que muito me afetou – José Ângelo Vieira de Brito.
Surgindo despretensiosamente através de suas publicações humorísticas nas páginas desse jornal, que ficou conhecido como o principal representante “Gênero alegre”, J. Brito, como era mais conhecido, conseguia me tirar um sorriso, quando a ansiedade, por vezes, me tomava de assalto.
Alagoano de Palmeira dos Índios, J. Brito, Bock, Bier, Antônio, Carlos Eduardo, M. Gregório Jr. ou João Black, como assinava em diversos jornais e peças teatrais, era um homem negro, que antes de sua chegada ao RJ, exerceu a política, sendo eleito várias vezes, deputado e senador estadual em sua terra natal.
O fato de ser negro e escrever em um jornal, que ora publicava textos que bebiam no eugenismo, me fez querer saber mais sobre este homem que, além da vida intelectual e boêmia, via no serviço público uma forma de lhe garantir sustento e (por que não?) destaque frente a uma sociedade do pós-abolição, extremamente preconceituosa.
J. Brito conciliou sua vida literária e artística com um cargo na Diretoria Geral dos Correios, assumido em 20 de fevereiro de 1892. Logo, foi galgando vários postos, até chegar a Primeiro Oficial da Diretoria Técnica, cargo que exerceu até sua morte. Trajetória profissional, que deve ter lhe garantido boas entradas na vida literária, sobretudo, humorística carioca, uma vez que ter um intelectual de sua qualidade, e ainda funcionário dos Correios, era muito vantajoso, principalmente, se levarmos em consideração o papel desta instituição na censura dos materiais literários da época.
Suas maiores contribuições para o campo intelectual foram suas produções culturais. Ele foi romancista, teatrólogo e jornalista. Como romancista, escreveu diversas obras como O Empata! (1901), romance publicado em O Coió, de 16 de janeiro de 1902; O Az de Copas (1902), publicado com o pseudônimo de Bock, clara alusão à cor de sua pele e da cerveja à qual este pseudônimo faz menção. Em parceria com Eça da Cruz, escreveu a ficção A Vingança de um Sapateiro (1899), obra bastante divulgada em O Rio Nu; e o drama O Coroação de Dom Manoel Segundo de 1908. Já, para o teatro, criou o diálogo O Beijo (com o qual foi inaugurado, em 15 de novembro de 1910, o Teatro Deodoro). Mas foi na imprensa, sobretudo, a cômica-obscena, que ele obteve maior destaque. Ele criou as revistas: Politicópolis, 1913; O Gabiru, 1914; Banho de Vênus, 1915; O Chefão, 1915; Sabina, 1915; O Irineu, 1924; Off-side, 1924; Honni Soit, 1932; Por A + B (La Petite Madame Dubois, de Paul Gavault); e Chic-chic (revista com Paulo Barreto, “João do Rio”, representada em 1906). Além disso, como colaborador, ele participou, com suas publicações, em A Careta, escrevendo sob o pseudônimo de João Black; no jornal O Coió, 1902; no Diário de Notícia; Gazeta de Notícias; A Notícia, no qual foi crítico teatral; Rua do Ouvidor, 1899; Tagarela, 1903; Tentâmen; dirigiu A Comédia; e o jornal O Rio Nu, 1898-1900.
Com o pseudônimo de Bock, escreveu um dicionário intitulado Dicionário moderno, que começou a ser compilado na edição de 03 de fevereiro de 1902 do periódico O Coió. Nesse dicionário, o tom cômico, muito característico de suas obras, se faz presente nos verbetes acerca de gírias cariocas, como no significado dado à palavra Abraço: “Substantivo de perdição. Meio caminho para o perigo. Com uma senhora casada é o caminho todo”.
As contribuições de J. Brito para O Rio Nu, também não ficaram para trás. Ele foi um dos redatores do jornal, no período de 2 de agosto de 1899 até 10 de março de 1900, quando foi divulgada uma nota informando a sua saída da função de redator. É, aí, através de sua presença nesse jornal, que ele perpassa, mais uma vez, minha história para além da profissional.
Sempre tive muita vergonha de falar sobre sexualidade, pois era um tema tabu em minha casa. Não falávamos sobre sexo, corpo, desejos. Entrando na universidade tudo aquilo que evitava falar em casa, me aparecia como uma enxurrada, alimentando minha curiosidade e juntando duas temáticas que me eram caras – as empregadas domésticas e a sexualidade. Assim, O Rio Nu e J. Brito, ocupavam um papel importante para além do acadêmico. Eles me permitiram enfrentar a vergonha que me paralisava.
José Ângelo Vieira de Brito faleceu, em 23 de janeiro de 1934, por “pertinaz moléstia”. Já não era tão conhecido por sua atuação no cenário cultural carioca dos primeiros anos republicanos, tendo os últimos anos dedicado sua vida à atuação nos Correios.
Em meio a possibilidades de uma História pós-humana, que vemos emergir nos últimos anos, J. Brito, em sua trajetória, mostra toda a sua humanidade, permeada de acertos, polêmicas e tretas. Acumulou amigos, como Humberto de Campos, que destaca em sua homenagem póstuma, a generosidade que José Ângelo tinha com os jovens intelectuais, que, assim como ele, migraram para o Rio de Janeiro, berço da intelectualidade da Belle Époque. Mas, também, desafetos, como Lima Barreto, que intimado a depor sobre o crime perpetrado por João Pereira Barreto, cunhado de Sílvio Romero, diz ao delegado, ao ser perguntado se havia percebido algum indício que João Pereira iria cometer algum crime na noite que estavam juntos: “– Ao falar a verdade, Sr. delegado, eu percebi. Ele me disse, mesmo, que estava com vontade de matar, fosse quem fosse”. Ao ser questionado sobre o que falou para o futuro homicida, disse: “– Homem, o que eu lhe disse foi o seguinte: ‘– João, se tu queres matar alguém, porque não matas o J. Brito?”. Se Lima Barreto, falou isso ou não, ainda não sei. Essa fala surge em texto de Humberto Campos, publicado no Jornal A Noite de 24 de janeiro de 1934. O fato é que J. Brito foi um intelectual importante de sua época e que merece ser lembrando, não tanto pelas polêmicas, mas pela trajetória de ser um homem negro escritor, pai de família e funcionário público.
Hoje, vejo minha trajetória se aproximar da dele. Também sou uma pessoa que viu no funcionalismo público a possibilidade de criar minha família e de ver um futuro diferente ao que é imposto pela sociedade.
Autobiografia: Professora da Universidade Federal de Uberlândia, gonçalense com orgulho e vascaína por teimosia.