Histórias de Felisberto – o caso Edson Felisberto

Autoria

Lucimar dos Santos

Ao desviar o olhar do para-brisa e ler “Edson, irmão” na tela do meu celular, o meu batimento cardíaco sofreu uma leve alteração. Já contava com a possibilidade de ouvir dele comentários sobre o livro que eu havia lançado há menos de dez dias. Edson é o filho de Jair Felisberto e Maria Aparecida Felisberto que, apesar de ter nascido em uma família de estrutura marcadamente matriarcal, recebeu a função de liderança e a autoridade moral que referenciou nosso finado pai. Daí, toda a expectativa transmutada em ansiedade.

Ao publicar o livro – que narra desde a infância de nossos pais em meio ao campesinato negro da Zona da Mata mineira, onde se conheceram e vieram a se casar, à saga de migração e nossa criação na Baixada Fluminense –, o que mais preocupava era se o enredo que criei para descrever contextos familiares seria bem recebido pela família que os protagonizaram; se daria conta de descrever a invenção de uma tradição familiar marcada pelo equilíbrio entre o autoritarismo paternal e um tipo de maternagem pautada em princípios religiosos. No acostamento da rodovia Washington Luís, lágrimas quentes e reconfortadoras rolaram pela minha face após ter ouvido palavras de elogios e agradecimentos pela sensibilidade e fidelidade da narrativa.

Edson Felisberto é o caçula entre os homens. Para muitos que observam os modos como os Felisbertos se relacionam enquanto família, o fato de o reverenciarmos como o sucessor de nosso pai pode ser diretamente relacionado com a sua conduta religiosa. Pelo caráter ilibado e postura de vida baseada em princípios morais sólidos com os quais ele se apresenta diante de nossa comunidade, desde tenra idade. Aos 27 anos, foi designado ancião de uma congregação das testemunhas de Jeová. Na estrutura desta denominação cristã milenarista e restauracionista, os anciãos são aqueles selecionados entre os homens batizados que demonstram experiência, maturidade espiritual e integridade moral.

“Pastor”, “Irmão” etc. são alcunhas que, por muito tempo, identificaram Edson Felisberto perante a nossa comunidade no bairro Novo Rio, localizado em São João de Meriti. Um município da Baixada Fluminense que faz parte da Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Foi ali que, orientado pela fé de nossa mãe, a religiosidade de meu irmão aflorou e foi se fortalecendo, à medida que se estreitava a sua relação com os conhecimentos compartilhados pelas Testemunhas de Jeová. 

A dimensão do sagrado tornou-se essencialmente parte da vida não só do meu irmão Edson Felisberto, mas de uma grande parte de meus irmãos. No caso do meu biografado, ele atribui suas conquistas a essa relação. Ou seja, entendendo o sagrado dentro da perspectiva da própria atividade humana, o fato de ele ter colocado em prática princípios bíblicos assimilados nos estudos com as Testemunhas de Jeová teria sido determinante para o aprendizado de autoconfiança e a capacidade de luta que permitiram que resistisse às agruras e limitações que se impõem a um homem preto, pobre e periférico. Meu irmão acredita que foi quando passou a acreditar que Jesus Cristo morreu por nós e a ter esperança de vida eterna que tudo passou a fazer sentido. Fundamentalmente, refletindo sobre as adversidades a que foi submetido, defende que: “– Esse entendimento fortaleceu a minha vida, de modo que decidi dedicar a minha vida a este segmento religioso”.

Imagem 1 - Casal de mãos dadas. A mulher é uma jovem negra de cabelos lisos na altura dos ombros, na cor castanho claro. ela está olhando para frente e sorrindo . Veste blusa de manga comprida preta, colar prateado e pulseira prateada na mão direita. usa uma saia loga preta e uma bolsa à tira colo em palha. Ao lado homem negro, cabeça raspada, está sorrindo e olhando para frente. usa terno preto , gravata cinza e blusa roxa. Ambos estão de pé. Ao fundo há uma tela de projeção branca com a frase projetada: “A verdade é a própria essência da tua palavra” - Salmo 119:160.” Abaixo uma mesa com toalha de renda branca com prata e taças de vinho.
Foto de álbum pessoal: na companhia da esposa Adriana em uma Congregação das Testemunhas de Jeová

Desde menino, meu irmão carregava o peso do próprio nome. Apaixonado por futebol, meu pai, que em uma auto-homenagem havia dado ao primeiro filho homem o nome de Jairo, decidiu homenagear o segundo filho nada mais, nada menos do que com o nome do Rei do Futebol. Como era mesmo “bom-de-bola”, a história de sucesso de meu irmão talvez pudesse ser contada a partir de um outro prisma se ele não tivesse sofrido um grave acidente. No período em que nossa família enfrentou as mais sérias dificuldades, para garantir nossa sobrevivência, atuamos como catadores em um aterro sanitário em São João de Meriti, em meio aos lixos, Edson mergulhou um dos pés em um monte de brasas, como consequência, o pé parou de crescer com atrofia de alguns nervos. Apesar de desenganado por médicos, após algum tempo, os nervos voltaram a responder, mas os pés seguiram com discrepância no crescimento. Talvez por conta dessa calamidade, quando teve a oportunidade ser o “Rei dos Estudos”, segurou com as unhas e com os dentes. 

Sempre atenta ao bom encaminhamento de todos os seus filhos, quando assumiu a condição de operária, foi possível à nossa mãe garantir encaminhamento profissional ao filho homem caçula. Ao Edson, foi apresentada a oportunidade de fazer um curso técnico no SENAI – o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – e um estágio na empresa Fabrimar. Em nossas memórias compartilhadas escaparam as dificuldades, a pressão e a dedicação necessária para que nosso irmão assumisse essas funções. Entretanto, meu irmão relembra que foi o único entre os filhos das funcionárias da empresa a ser aprovado na seleção para o ingresso na instituição de ensino. Bem classificado, pôde optar pelo que se considerava o melhor curso: o de torneiro mecânico.

Assim, o ex-catador de lixo que, aos nove anos de idade, havia iniciado a vida no mercado de trabalho em uma fábrica de pipa, e que já havia atuado nas ruas como vendedor de picolés e bolinhos e em vários biscates precários, aos quinze inicia, o aprendizado de um ofício que o tornaria um operário. Uma conquista realmente extraordinária: “– Você imaginar que, não tendo nada, iria estudar, receber para isso e ser contratado por uma empresa era algo muito recompensador e alegre”, declara Edson relembrando do resultado obtido na primeira vez que mediu o seu nível de capacidade. Mesmo no teste vocacional para aferir sua aptidão profissional, meu irmão obteve um bom resultado. 

A capacidade de assimilar os conteúdos ensinados e a forma disciplinada com a qual se dedicou ao seu aprendizado garantiram que, do setor da tornearia, o meu irmão se destacasse e fosse um dos dez alunos indicados para concorrer, dentre os quase mil estudantes da unidade de Duque de Caxias, ao prêmio de melhor aluno do SENAI. “– Foi uma conquista ter sido indicado como um dos dez alunos e foi uma conquista maior ainda ter ganhado este concurso”. Ainda de acordo com a sua narrativa, vencida a etapa regional, por problemas internos da instituição, a estadual não foi realizada. Entretanto, argumenta que a vontade de transformar sua realidade social e o acúmulo de experiências possível durante os dez meses de treinamento para a competição, bem como o adquirido status de melhor aluno, abriram importantes portas no mercado de trabalho após suas etapas de formação profissional.

Afastando-se do que identificamos como transtorno em alguns adolescentes que precisam lidar com as várias transformações, em níveis familiar, social, profissional e fisiológico, a estrutura de personalidade de meu irmão Edson Felisberto ganhava forma a partir de sólidas raízes e foi  se tornando mais consistente conforme chegava à idade adulta. E os interesses, motivações, valores e padrões emocionais demostrados se aproximavam dos observados na formação de muitas lideranças comunitárias que se destacam por sua habilidade social. 

Por exemplo, em uma roda de conversa familiar sobre a interação de meu irmão com outros adolescentes do “Morro da Caixa D’água”, onde fomos criados, veio à memória que coletivamente guardamos o episódio do “barranco”. Nosso pai tinha o espírito de construtor, era costume os filhos passarem suas férias escolares atuando como “serventes de pedreiros”. Nesse contexto, quando adolescente, a forma com que ele recebeu a solidariedade dos amigos que formavam “a turma da rua” para escavar um barranco onde meu pai pretendia construir mais uma casa de cômodos para locação evidenciou os fortes laços que já tinha com a nossa comunidade. Pode se dizer que morávamos no “Largo da Rua Fluminense”, onde as brincadeiras aconteciam; onde as relações comunitárias eram tecidas; onde ensaiávamos formas de lidar com a opressão e com a desigualdade. Nos anos 1980, nossa casa era um reduto potente, espaço de trocas e de esperança. O caso do barranco demonstrou que ali ganhavam forma as redes de solidariedade que nos mantêm em conexão identitária com o território até os dias de hoje. 

A relação com o território foi construída na vivência cotidiana. Na adolescência, a partir do “Largo da Rua Fluminense”, além de frequentar bailes com os amigos, meu irmão tomava a liderança em fazer fogueiras, organizar festas e torneios de futebol. Por exemplo, era ele quem tomava a dianteira na compra de camisas e no agendamento dos jogos do time da rua. Conciliava, assim, uma rotina de estudos profissionais e religiosos com uma ativa vida comunitária. Daqueles jovens, lembramos que o Aldair (Dá), Silvio (Nico), Elói (Loi), André (Gato), Olímpio, Otávio, Aldair e o Edson, na verdade, se tratavam como irmãos.

Na década de 1990, quando a opção pela vivência religiosa já havia sido feita e os bailes haviam sido substituídos por entretenimento mais próprios os seguidores de sua organização religiosa – como os encontros na pracinha local com membros do Salão do Reino – Edson conheceu Adriana. Ela viria a ser a mãe de Isabelle e Petterson, seus dois filhos. O casal completou 30 anos de matrimônio, no dia 1º de julho de 2024. Aos 53 anos de idade, aposentado desde os 51, continua na ativa. Atua como gerente de produção em uma importante empresa. 

Imagem 2 - Uma família, em que no lado direito da imagem há um homem negro sentado com as mãos apoiadas uma na outras sobre uma mesa, cabeça raspada, sorrindo e vestindo blazer azul marinho e bluza branca. Ao lado, com os braços apoiados em seu ombro há uma mulher sorridente com blusa preta com as mangas compridas e com leve transparência. Ela é negra, com cabelo liso e preto amarrado em forma de rabo de cavalo e com um brinco dourado. Atrás do casal há dois jovens em pé e levemente inclinados para frente. No canto direito da imagem, atrás do homem descrito, há um jovem negro sorrindo, aparenta estar na adolescencia, tem cabeça raspada  e veste blazer preto e blusa quadriculada em branco e preto, ao seu lado há uma jovem negra, cabelos trançados longos, está sorrindo, usa brincos prateados, blusa preta e óculos com armação preta.
Foto de álbum pessoal: o casal com os filhos Isabelle e Petterson.

O percurso profissional foi iniciado no chão da Fabrimar, como torneiro ferramenteiro. Ascendendo na escala profissional, foi supervisor e gerente em empresas de grande porte como a Forjas Brasileiras, Rentamachine e na RTJ Engenharia de Vedações. A trajetória profissional de Edson Felisberto é belíssima. Vale a pena, ressaltar o fato de ele ter transposto o limite que o sistema educacional brasileiro estabeleceu para os filhos das mães transformadas em operárias pelo sistema de opressão capitalista. Na relação de exploração que esse sistema estabelece, o alto escalão empresarial parece ser reservado àqueles com educação científica ou, no limite, com a tecnológica. Entretanto, a formação técnica do meu irmão foi ao nível do ginásio, uma etapa educacional que se seguia ao ensino primário e que antecedia o ensino médio. Correspondia aos quatro anos finais do atual ensino fundamental. 

Assumir postos de liderança na hierarquia empresarial não era algo esperado para um menino com a sua origem social. Justamente por conta desta origem, na sua trajetória, inicialmente, o prosseguimento no ensino regular não foi priorizado, sim a formação técnica. Devido à precariedade econômica de nossa família, meu irmão optou por assumir logo uma vaga de emprego. Ao longo dos anos, as defasagens de aprendizagem foram sendo superadas com cursos e palestras. Aos 22 anos de idade, voltou às salas de aula para então cursar o Ensino Médio; aos 38, participou do Promimp. Apesar das sólidas conquistas profissionais, o racismo e a circunstância de serem invisíveis biografias como a sua faz com que, socialmente, não tenha reconhecido o capital simbólico de sua história de vida. “– Eu sofro preconceito quase todos os dias”, declara. Cotidianamente, sofre discriminação no bairro onde atualmente vive com sua família. Associado ao perfil esperado de um homem preto, é constrangido em filas de clientes especiais de banco, confundido com segurança de shopping ou com motorista particular de seu próprio carro.

Imagem 3 - Três homens sorrindo. No canto esquerdo da imagem há um homem negro, cabeça raspada, de pé, com um dos braços apoiado em um balcão, vestindo blusa de manga comprimida preta, crachá no pescoço, calça branca e tênis preto, no meio, homem branco, cabelo liso, curto e grisalho,está sentado em um banco e veste blusa preta dobrada no antebraço, crachá no pescoço e na mão direita carrega uma garrafa de água mineral. No canto direito da imagem há um homem branco, cabelo liso, curto e grisalho, está de lado voltado para o canto esquerdo da foto, usa óculos com a armação em detalhes preto, veste blusa preta com as mangas dobradas, crachá da empresa, calça, cinto e sapatos pretos.
Foto de álbum pessoal: com companheiros de trabalho em uma Feira Tecnológica.

Sem sombra de dúvida, entretanto, o reconhecimento social na comunidade em que fomos criados, bem como o papel que ele representa na família Felisberto, faz com que toda a sua história valha a pena ser biografada. Por outro lado, fundamentalmente, pelo que introjetou do ensinamento materno, foi o percurso de privilégios dentro da estrutura de sua organização religiosa que lhe proporcionou a indelével marca de liderança que hoje ostenta. Também, nessa estrutura, Edson Felisberto ascendeu na hierarquia, assumindo desde o posto de publicador até o de vice-presidente. Por sua capacidade de estimular e guiar os congregados, participa dos principais eventos religiosos, organizando e discursando. Segundo o seu depoimento, foi seguindo a orientação do “maior instrutor do mundo”, Jeová Deus, que ele conseguiu se tornar um bom pai, marido, filho, irmão, profissional, enfim, alguém que só semeou exemplos de boa conduta. 

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