Dona Ivanísia – Texto de neto para avó

Autoria

Vinícius Natal

Pois tudo o que conto aqui me foi cantado e contado

Nos bancos do ônibus

Entre os azulejos da cozinha

Em frente ao tambor desencourado da quadra

Nas bordas das rimas e no equilíbrio da sobrevivência

De avó para neto

E, agora, de neto para avó.

Aprendi a admirar Dona Ivanísia, ou “doutora”, ou somente minha avó, observando seus gestos, seu cuidado com o outro e, principalmente, seu talento para sorrir nos obstáculos. Os dribles que dava, com a caneta, eram a música perfeita para ocultar os problemas que a vida lhe oferecia. A palavra certa e sensível, nos momentos difíceis, para todos os amigos, atuavam como felicidade plena de estar para e junto aos seus. Ser compositora era o seu maior talento. Ser, para mim, a mulher mais corajosa e carinhosa do mundo, era seu pódio absoluto. 

Pois é desse lugar de afeto que eu falo e foi nesse chão que me criei e me fiz pessoa. 

Nascida em 03 de Julho de 1944, no Rio de Janeiro, no bairro do Grajaú, filha de Eloísa e Severino, era ela quem ajudava a levar as roupas que minha bisa lavava e passava para as madames da região. Muito do que fazia tinha de arte: Desde a do equilíbrio das trouxas na cabeça, até o teatro no colégio e os concursos de poesia- que se orgulhava em dizer que sempre tirava ” o primeiro lugar”. Escreveu, encenou e, assim, começava uma vida baseada no equilíbrio de ser mulher, negra e artista.

Como o destino de muitas daquela década de 1950 casou cedo e, assim, como se dizia, “constituiu família”. O que para a sociedade seria um modelo ideal, para minha avó foi seguir a risca o que lhe fora ensinado. Sobrevivência das mulheres em meio a um patriarcado feroz, a carreira artística ficaria no aguardo. Trabalhou em banco, foi secretária, datilógrafa, mas nunca deixou que a oratória lhe deixasse, pois a música e a poesia sempre estiveram em suas veias e seu cotidiano.

Falava, gesticulava, fazia rir, séria e mordaz com seus princípios.

Era muito comum que aos finais de semana fosse ao samba com uma amiga, Vera, ou com a Ilma, ou com a Fátima, ou sozinha, para a quadra da Portela. Já meu avô, José Carlos, devoto de São Jorge e Imperiano, ficava na quadra do reizinho de Madureira. Os dois se encontravam ao final da noite e iam para casa. Me contava que sempre tinha aquele pensamento: E se eu fizesse parte? E se eu escrevesse samba de enredo? Desfilava, flertava com o samba mas participar do lado de dentro? Ainda não.

Foi quando, após a separação, tomou coragem e retomou os estudos. Formou-se na SUESC, em Direito, criando seus três filhos – e tantos outros que a vida lhe ofereceu. Foi quando, também, deixou sua veia artística aflorar e, levada por um vizinho, Davi da Vila, começou a frequentar as rodas de samba da ala dos compositores da Unidos de Vila Isabe, em 1987. Voltou a escrever. Ainda tímida, começou a entoar seus versos para aqueles homens e, ao mesmo tempo, secretariava as reuniões do grupo. Foi se enturmando e, quando viu, já fazia parte. Fez o teste – o que era obrigatório para qualquer um que quisesse ingressas na ala – e foi aprovada.

Compositora!

Construiu uma rica carreira compondo sambas, tanto de enredo como os de “meio de ano”, aqueles cantados durante os períodos não-carnavalescos. Era da mesa de ferro velha, no canto da cozinha, que rabsicava suas rimas, sempre com a caneta preta e a folha ofício, em branco, na posição. Aliás, a cozinha da casa de Jacarepaguá, como é frequente em várias famílias negras da cidade, era ponto de encontro para rodas de samba e debates sobre composição, a vida, os desamores e desarmonias. Foi ali, na cozinha de azulejos, com mesa sempre posta e cerveja sempre gelada, que aprendi o que era a vivência em uma família de sambistas. Nos meus pequenos passos, já acompanhava as panelas de comida transbordando afeto e temepero, as batidas de maracujá distribuídas – e sempre era pouco! – e as rimas e versos que saíam daqueles encontros.

Imagem 1 - Mulher idosa, negra, com cabelo preto 	na altura do ombro. está vestindo uma camiseta branca com três botões ao centro, e uma bermuda escura. está um pouco inclinada e seu braço direito abraça um menino com cabelo preto cortado curto, ele veste uma camiseta branca, olha para frente e suas mãos estão para baixo e juntas. ao fundo vemos uma cozinha com azulejos bege com flores e um relógio de parede preto e branco. Na parte da frente da imagem  há vultos de pessoas que passavam no momento da fotografia.
Foto: Acervo famíliar. Dona Ivanísia e o autor, na cozinha de Jacarepaguá.

Mas foi para o carnaval de 2004 – mais de 15 anos depois de escrever seu primeiro samba de enredo – que ganhou o seu primeiro concurso de sambas de enredo, na Vizinha Faladeira. Com o enredo “A Bela Adormecida”, os próprios compositores, na final, votaram para escolher o melhor samba como o de sua parceria. A escola foi campeã e foi quando pude ver, pela primeira vez no samba, minha avó realizada e emcoionada. Afinal, seu samba foi um dos responsáveis por embalar a escola para o grupo de Acesso A, conquistando os 40 pontos da avenida. 

Mesmo que tenha sido a mulher que mais ganhou sambas de enredo na história das escolas de samba – ao total, 18 sambas de enredo – nunca ganhou uma disputa em sua escola de coração,a  Vila Isabel. Apesar de tantas finais  –  incluído a tão falada de Gbalá, para o ano de 1993, onde seu samba perdeu para o de Martinho da Vila – poucos conhecem sua história e foi por isso que resolvi apresentar esse breve relato, com o intuito de que possa ser reconhecido e valorizado como a compositora e mulher espetacular que foi, e é.

Antes de nos deixar, em uma tarde de Terça, em meio (…) Dentre tantas coisas que aprendi a admirar, o que levarei comigo são a sua resiliência com a vida e a capacidade de encontrar poesia nos momentos mais difíceis. Já debilitada em sua locomoção, começou a usar bengala para ir de um canto ao outro da cidade. Não se deixou abater, ia para lá e para cá… mas sabíamos que aquilo lhe machucava internamente pois não era tão ágil quanto anteriormente.

Imagem 2 - mulher negra, idosa, cabelo preto e curto. está olhando para frente, sentada e batendo palmas, Veste camiseta preta, colar preto e calça vinho. tem um relógio no seu pulso esquerdo e uma pochete preta em seu colo. Ao lado há um homem negro com barba preta. Usa boné verde, camiseta branca, bermuda jeans e pochete preta na cintura. Está de pé tocando pandeiro. Ao fundo vemos uma parede com portas de metal parecendo portas de bares e crianças  e homens  em pé.
Dona Ivanísia em uma roda de samba, em Curicica, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Em uma tarde de Terça, em meio às atribulações cotidianas, meu telefone tocou. Era ela me dizendo que tinha feito mais uma música. Perguntou se eu tinha um tempo para ouvir. Disse que sim – ai de mim dizer não… – e ela começou a cantar.

Não me tire a bengala que eu posso cair

Que eu posso cair

Não me tire a bengala que eu posso cair

Que eu posso cair

É colune é artrose, é bico de papagaio

Passei a usar a bengala seique sem ela eu caio

Mas se eu cair me levanto e dou a volta por cima

Pois sou poeta do samba

Sacudo a poeira versando com rima

Era um samba calangueado, segundo ela, “estilo Jovelina, Clementina”. Gostei muito  e elogiei, como fazia com tudo que ela me mostrava. Pois, mais que uma música, os versos que minha avó compunha deixavam lições que nenhum livro seria capaz de traduzir. Talvez, as maiores lições que ela queria deixar para seus filhos e neto: Resistir com samba e, se cair, sacudir a poeira versando com rima.

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