Nos finais de semana dos anos 80, uma das minhas principais alegrias era assistir com dona Célia, a minha mãe, as apresentações artísticas de transformistas na televisão. Vivíamos uma época de grande expansão da tv no Brasil, ainda que contássemos só com os atualmente chamados canais abertos. Era em frente à TV que a família se reunia, sabia das notícias, acompanhava as novelas, conhecia as primeiras séries ou, como a banda Legião Urbana cantou na música Geração Coca-Cola, os chamados enlatados. Os nossos programas preferidos eram os que tinham auditório, a presença do público, neles se apresentavam as transformistas. Ainda que, à época, eu não entendesse muito bem do que se tratava. Admirávamos as roupas luxuosas, sempre com muitos brilhos, a maquiagem impecável e o próprio show. Era incrível a capacidade que essas artistas tinham de se transformar a cada semana. Para além dessas apresentações, nomes como Rogéria e Veruska eram comuns na minha casa. Até mesmo, porque um programa naquele distante Rio de Janeiro era acompanhar em revistas ou muitas vezes presencialmente a abertura do prestigioso Baile Gay do carnaval carioca.
Já nos anos 90, quando entrei na faculdade de História da Universidade Federal Fluminense, a transformista Laura de Vison era alvo de intensos debates, encontros e admiração para uma geração que havia crescido na ditadura e acompanhava com interesse as mudanças que vinham acontecendo no país desde 1985, quando os militares finalmente haviam deixado o poder após 21 anos.
Muitas dessas artistas haviam começado a sua carreira, nos anos 70, quando a vida noturna no eixo Rio-São Paulo era marcada por espaços como Boite Sucata e Barbarella, assim como os Teatros Brigite Blair, Princesa Isabel e Rival. Os shows eram delas!
É nesse cenário que surge Claudia Celeste.
Nascida em 1952, no bairro do Irajá, Rio de Janeiro, Claudia chegou a fazer o serviço militar obrigatório. Aos 20 anos, era esteticista e cabeleireira no agitado bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. Foi no salão que Claudia começou a sua transformação, sendo, no futuro, uma das primeiras pessoas no Brasil a fazer a cirurgia de transgenitalização na Europa, mais precisamente na Bélgica. Em suas palavras, foi a decisão mais sensata que tomou na vida.
Em muitas das entrevistas que concedeu, Claudia afirmou que sua família via com naturalidade a sua “condição de travesti”, mas os ataques nas ruas só teriam diminuído quando ela passou a se vestir como uma mulher.
Sua estreia no mundo artístico se deu como bailarina no Litle Club, no Beco das Garrafas. Cláudia estava com apenas 21 anos de idade. tinha ido acompanhar uma amiga que faria o teste para elenco do espetáculo quando o diretor perguntou se ela também iria participar. Cabe lembrar que, na época da ditadura, os espetáculos com travestis, que dominavam os palcos, principalmente, os relacionados ao teatro de revista, estiveram proibidos entre 1969 e 1973. A presença de travestis em programas de TV, desfiles de escolas de samba, bailes de carnaval e em espetáculos foi amplamente divulgada pelos jornais da época, não raramente, lamentando a perda do brilho das atrações. Foi ainda neste ano, que Claudia participou da peça “O mundo é das bonecas”, com Jane di Castro no Teatro Rival. Em 1976, Claudia foi eleita no Teatro Carlos Gomes, Rio de Janeiro, a Miss Boneca Pop, concurso de beleza que havia começado em 1974 e aquele acabou sendo o seu último. Cláudia logo se tornou uma das queridinhas do polêmico Carlos Imperial, que a convidou para atuar na Boite Sucata, do rei da noite Ricardo Amaral, ao lado de Márcia de Windsor e Sidney Magal. Carlos Imperial, em sua coluna Na Corte do Imperial, sem liberdade para espinafrar nenhum elogio é válido, publicada na Revista Amiga, divulgava seus shows sempre destacando que Claudia Celeste, uma das suas lebres, era misteriosa. O “mistério” de Cláudia mobilizou outros colunistas, como Cidinha Campos, que logo revelaram seu nome de batismo.
Não há consenso sobre a sua primeira aparição pública na tv. Fala-se do programa do Airton Perlingeiro ou de Mauro Montalvão, mas, sem sombra de dúvida, a que mais chamou atenção inicialmente foi a sua presença no elenco feminino da novela Espelho Mágico, da tv Globo, em 1977, ao lado de Sonia Braga, sob a direção de Daniel Filho. Não só o público estava de olho em Cláudia, como o departamento de censura da ditadura, que acabou proibindo a sua presença na novela
Além disso, assim como qualquer outra apresentação artística no Brasil da ditadura, Cláudia enviava seus roteiros de shows para a apreciação dos censores do Serviço de Censura de Diversões Públicas. Até onde foi possível consultar na documentação no acervo do órgão disponível sob a guarda do Arquivo Nacional, o único veto foi realmente a sua participação na novela acima citada, shows como Bonecas com tudo em cima e Febre foram aprovados sem problemas. Em sua maioria as músicas, como Pra começar, de Marina Lima, e Aprendendo a jogar, de Guilherme Arantes, já haviam sido analisadas anteriormente devido à apresentação do pedido de liberação por seus artistas originais.
Claudia voltaria à telinha, em 1988, portanto, durante o processo de transição à democracia no país. A novela era Olho por olho, transmitida na extinta TV Manchete que, na época, inovou com novelas como Dona Beija e Pantanal. A novela tinha como autor principal José Louzeiro, com roteiros de Geraldo Carneiro e Leila Miccoli, a direção era de Ary Coslov e Atilio Ricco. Sua personagem se chamava Dinorah, uma garota de programa, que se envolvia afetivamente com Máximo, personagem do Mário Gomes. Cláudia também fez uma carreira internacional, com shows no Moulin Rouge, de Stutgard; El Molino, de Barcelona; Pulverfass, em Hamburgo; Alcazar, em Hannover, dentre outros, onde cantava não apenas em português, mas também em inglês e francês. No Brasil, chegou a ser dirigida pela Bibi Ferreira no espetáculo Gay Fantasy. Alguns desses shows ela narrou em vários dos espetáculos que escreveu e encenou aqui no Brasil. Em muitos desses shows, teve a parceria duradoura de Wagner B., seu companheiro de muitos anos.
No cinema, a artista atuou ao lado de nomes importantes em filmes como Motel, Punks – Os Filhos da Noite, de Levi Salgado, e Beijo na Boca, de Paulo Sérgio de Almeida.
Artista que cantava, apresentava, dançava, interpretava, assinava e produzia, Cláudia tinha como principal demanda o respeito e a dignidade às profissionais, assim como defendeu a prevenção e cuidados diante do avanço da epidemia de HIV e AIDS nos anos 80.
Cláudia faleceu, em 2018, com apenas 65 anos, vítima de uma infecção pulmonar, mas deixou um legado que levou o google a homenageá-la, em 22 de agosto de 2022, por sua luta pela dignidade e orgulho LGBTQIA+.
Autobiografia: Sou mineira de nascimento, pernambucana por adoção e niteroiense de coração. Flamenguista apaixonada, fã de Carlinhos e Adílio. Doutora e professora de História da América da UFF.