Vereador Capitão Gaspar José Soares: um político negro da Baixada Fluminense

Autoria

Carlos Eduardo da Costa / Valdirene Pessoa

Nos primeiros anos como professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, me propus a investigar mais a política local. Realizei prospecção em diversos arquivos, incluindo a Câmara Municipal de Nova Iguaçu. Infelizmente, a maior parte do seu acervo de atas encontrava-se espalhada e, por vezes, sem localização definida. Contudo, para minha grata surpresa, eles haviam publicado um livro, na década de 2000, chamado de “Memória da Câmara Municipal de Nova Iguaçu”. Ali, está reunida uma gama de documentos escritos e fotográficos que, à época, consideravam de extrema importância para a história local. 

Dentre todos os documentos, a fotografia destacada foi a que mais nos chamou a atenção, pois havia três pessoas negras. A seguinte legenda transcrevia a imagem: “Vereadores (1919 -1921). Da esq. para a dir.: Gaspar José Soares, Izaac Manoel da Camara, Alberto Mello, João Telles de Bittencourt, Peregrino Esteves Azevedo, Nicolau Rodrigues da Silva (funcionário), Alfredo Soares e Alberto Travassos Veras (em pé); Otávio Áscoli, Ernesto Francça Soares (presidente) e Pythias de Castilho Lobo (sentados)”. Inicialmente, para quem transita por Nova Iguaçu, os nomes que aqui se apresentam não são estranhos, pois muitos deles são referenciados e homenageados com nomes de rua. Entretanto, Gaspar e Izaac rapidamente saltaram aos nossos olhos. Como em uma sociedade racista, da Primeira República, com a escravidão recentemente finalizada, permitiu dois negros ascenderem a Vereadores no antigo Município de Iguassú?

Gaspar José Soares não foi um militante combatente, longe disso. Sua vida cheia de percalços, de lutas no ir e vir de um cotidiano tortuoso, obstinado em suas contendas, nos revela que as escolhas feitas no decorrer de sua trajetória, através dos embates e disputas do jogo social, mostrou sua busca assiduamente em se estabelecer social e economicamente. Suas alegrias e conquistas fizeram parte amiúde de seu cotidiano, fruto de muita labuta social, política e econômica. Gaspar José Soares nasceu, no dia 17 de junho de 1864, filho legítimo de José Maria Mendes Soares e Maria José da Conceição e foi batizado, sete meses depois, em 18 de janeiro de 1865. Seus pais casaram-se, no dia 9 de maio de 1863, na Paróquia da Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. O pai era natural de Portugal; e a mãe, do antigo município de Iguassú. Nascido no século XIX, não passou pelo cativeiro. Ao longo do século XX, exerceu diversos cargos públicos e despontou economicamente no setor privado, cujos ganhos, somados a heranças, permitiram-no acumular bens materiais. Além disso, foi vereador por cinco mandatos consecutivos até a extinção das câmaras municipais pelo governo Vargas. Em virtude da escassez de fontes e longe da pretensão de abranger todos os aspectos da vida do Vereador Capitão Gaspar José Soares, aqui pretendemos dar luz a uma importante carreira política silenciada pela história local. 

Pouco conseguimos averiguar da vida de seus pais, sendo a única aparição de seu progenitor, em jornais da época, um convite para sua missa de sétimo dia. Na partilha dos bens de seu pai José Maria Mendes Soares, ficamos sabendo que ele era lavrador e de filiação desconhecida. Casou-se novamente, em 29 de julho de 1899, com Dona Maria de Sá Bittencourt pelo regimento comum e costumes do Estado, ele então viúvo com 34 anos e ela solteira com 15 anos de idade. Sua profissão registrada no assento de casamento é a de proprietário, sendo natural e residente daquele distrito de Iguassú. Frutos de seu segundo casamento, localizamos seus filhos: Aristides, Arthur Soares e Octávio Soares. Seus netos são Amadeu e Ondina. Localizamos, ainda, o filho de Octávio, Fernando Luiz Cruz Soares, nascido em 1939.

No registro de batismo de Gaspar José Soares não constava o item “cor”, diferentemente de seu atestado de óbito, no qual foi classificado como branco. Isso não nos causa estranheza uma vez que durante toda sua trajetória – salvo raras exceções, como a fotografia de sua posse como vereador – silenciou conjunturas que aludissem à sua origem étnica. Nesse período, a designação de cor estava relacionada ao cativeiro, sendo uma condição imposta aos descendentes. A cor inexistente, antes de demonstrar apenas uma assimilação de um ideal de branqueamento, era também um signo de cidadania dentro daquela sociedade. O enlace com mulheres brancas pode representar uma absorção das teorias raciais na vida particular desses homens negros. Em relação ao nosso pesquisado, acreditamos que não tenha sido diferente disso, mesmo que a cor delas não tenha sido identificada nas fontes. No entanto, Gaspar José Soares registrou todos os seus filhos como brancos. 

Vereadores de Iguassú posando para foto. Oito vereadores estão em pé e na frente mais três sentados. A foto é sépia
Vereadores de Iguassú, 1919-1921 Fonte: Memória da Câmara Municipal de Nova Iguaçu.

Não encontramos, em nenhum momento de sua trajetória, qualquer menção que o ligasse à militância negra nem qualquer ensejo pró ou contra as teorias raciais – mas elas estavam presentes nos jornais, em debates jurídicos e em diferentes setores da sociedade. É muito provável que Gaspar José tivesse facilmente acesso a todo esse discurso, pois era uma figura que circulava em diferentes lugares do Rio de Janeiro, perpassou por distintas profissões e sabia manusear de forma estratégica as normas sociais – calar-se era uma delas, além de se fazer presente em diferentes momentos da vida política local. Marcar seu nome em uma rua do município foi seu legado. 

Gaspar José Soares passou pelo período da escravidão, adentrou o pós-abolição e, apesar do inerente racismo da época, conseguiu acumular posses, obtendo proeminência política na região. Para além da relação familiar, devemos também nos atentar para as redes de relações mais complexas de sustentação material e/ou política. Com a morte de seu pai, em 16 de maio de 1902, obteve: uma casa na cidade de Maxambomba no valor de 4:000$000, uma casa coberta de telhas bastante estragada de 1:000$000, uma casa com fabrico para farinha no valor de 1:000$000, uma pequena casa com fabrico de farinha e mandiocal de 100$000, um poldro tordilho avaliado em 100$000, um cavalo russo escuro e um castanho, ambos avaliados em 50$000. A obtenção desses bens é de grande valia para entendermos de quais maneiras os utilizou como estratégia para obter proeminência econômica, social e política na região.

Gaspar José Soares também fez e desfez Sociedades Empresariais em sua trajetória. No decorrer de sua vida, podemos encontrá-lo como subdelegado de polícia ou escrivão, às vezes, exportador de frutas cítricas, uma raríssima aparição como advogado e um ativo vereador sempre presente nas reuniões solenes de seu cargo público. Ele também foi um ávido comerciante de terras. Comprava bens de massa falida e os revendia colocando anúncios em jornais locais. Atuando como negociante, Gaspar José Soares amiúde oferecia no jornal Correio da Manhã propriedades em Nova Iguaçu, como chácaras e fazendolas. Sua trajetória foi relativamente permeada por labores variados que, por vezes, exerceu de forma concomitante. Tal pluralidade de ofícios deve ser tomada aqui, em primeiro lugar, como uma estratégia de vida dele. Temos que reforçar o quanto havia de uma predisposição e empreendedorismo para o mundo do trabalho. A diversificação da obtenção de proventos se fazia necessária para se manter ativo, alçar degraus na vida pública e  para conservar o prestígio social, era necessário permanecer estável economicamente. 

A primeira vez que encontramos Gaspar José Soares envolvido com a vida política foi em 1899, quando da posse na Câmara Municipal dos últimos vereadores eleitos, na qual estavam reunidas “as pessoas mas gradas do município”. Seu primeiro mandato como vereador foi registrado entre os anos de 1917-1918, sendo reeleito por mais quatro mandatos: 1919-1921, 1924-1927, 1927-1929 e 1929-1930. E o seu último registro como vereador no município de Nova Iguaçu é de 1930. Notamos que, aos poucos, com suas ações e escolhas de seus aliados, o Capitão Gaspar José Soares foi galgando espaço e erigindo um caminho que o levou a ganhar notoriedade na região.

Gaspar José Soares tentou por diversas vezes se eleger a cargos da mesa diretora da Câmara de Vereadores, sempre obtendo apenas um voto, o seu. Suas constantes tentativas, até onde conseguimos apurar, em galgar uma posição na mesa da Câmara de Vereadores, faz-nos refletir sobre possíveis dificuldades que encontrou ao exercer sua função. Em sua última eleição, no ano de 1930, obteve 1.260 votos de um total de 10.733, colocando-se como terceiro Vereador mais votado na região. Com a Revolução de 1930, o Congresso Nacional foi dissolvido e fechado, assim como as Assembleias dos Estados e as Câmaras de Vereadores. Após longos anos sem atuação política em Nova Iguaçu, a Câmara retomou seus trabalhos na legislação de 1936 que deveria ter sido encerrada em 1939, mas foi suspensa pelo golpe do Estado Novo (1937-1945) e o novo governo de Getúlio Vargas fechou mais uma vez as Câmaras de Vereadores. 

A última aparição de Gaspar José Soares tentando voltar à vida política do município foi, em julho de 1937, quando esteve presente em uma reunião, sob a legenda Reação Democrática de Iguassú, para apoiar candidatos à Presidência da República, nas eleições que deveriam acontecer em 03 de janeiro do ano seguinte. Seu nome foi elencado entre outras figuras públicas que, em sua grande maioria, eram diferentes dos elementos que acompanhamos nos seus anos de vereança. A eleição de 1938 não chegou a ser realizada, pois Getúlio Vargas estabeleceu, em 10 de novembro de 1937, um novo sistema de governo conhecido como Estado Novo. A Câmara de Vereadores foi fechada novamente e só retornou, em 1947, oito anos antes do falecimento de Gaspar José Soares, com então 82 anos de idade. 

Assim, encontramos uma última nota no jornal Diário Carioca do dia 17 de maio de 1955: “Nas pequenas comunicações, ocuparam a tribuna: […] o Sr. Luís Guimarães, que justificou um requerimento de pesar pelo falecimento, em Nova Iguaçu do cidadão Gaspar José Soares”. Depois de uma longa vida, já no fim de sua jornada, muito provável pelo avançar da idade, pouco encontramos sobre suas derradeiras ações. Difícil determinar o montante de seu pecúlio no fim de sua vida. E, sobre seus rebentos, pouco encontramos na história da cidade: para além dos parcos ganhos econômicos, não herdaram ou não souberam aproveitar as conquistas políticas, materiais e imateriais do seu pai.

Mesmo em um período em que teorias raciais excludentes ganhavam força, elas não foram suficientes para fechar os interstícios desse sistema e impossibilitar a mobilidade de negros nesta sociedade. No esboço de suas relações, podemos inferir a importância das teias que ele teceu buscando realizar seus projetos. Envolveu-se amiúde com as pessoas mais gradas do município, estando inserido nessa elite política e econômica de sua época. Se Gaspar José Soares conseguiu alçar importante projeção dentro da vida político-administrativa da cidade, foi por saber manejar e se locomover nos meandros daquela sociedade. 

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