“Para a querida Jackie, meu carinho, minha admiração e sempre juntos na luta.
Super beijo, João W. Nery, Jan. XVII”.
“Para minha querida amiga Jackie, nossa contribuição aos direitos dos ‘discriminados’. Super beijo, João W. Nery, Jun. XVII”.
Peço desculpas se este texto soar autocentrado, entretanto, é impossível compor uma minibiografia poética sobre João sem partir do meu lugar de escrita, como alguém que o conhecia pessoalmente, e não só de ler ou ouvir falar a respeito. Ele me chamava e assinalava o meu nome assim: “Jackie”, nessa grafia americanizada que eu achava carinhosa. Antes de ser trans, João era homem, mas gostava de ser tratado como “transhomem”.
Essa maneira de se referir aos homens trans também me lembrava a gramática inglesa, em que um adjetivo necessariamente antecede o sujeito ao qual se refere. Eu só o conheci pessoalmente, quando mudei de Brasília para o Rio de Janeiro, em 2015. Nossa admiração mútua foi imediata, comigo extasiada ao conhecer a produção literária ímpar dele, que ressoava seu eruditismo consistente, tornado mais colorido pelo seu intenso ânimo.
Registrado ao nascimento, em 12 de fevereiro de 1950, na cidade do Rio de Janeiro, como Joana, João W. Nery não demorou para protestar por um lugar na masculinidade, questionando, desde criança, porque lhe tratavam como se menina fosse: “– Ao mesmo tempo que meu corpo era eu, também não era” (Nery, 1984).

Vivenciar a sexualidade, ao contrário do senso comum, não é problema algum para pessoas trans, em termos de ser atraente para as outras pessoas, principalmente, as cisgêneras. Os grandes problemas são, em primeiro lugar, a autoaceitação, em seguida a autovalorização e amorosidade consigo mesma, enquanto pessoa trans, e a valorização dos corpos trans por pessoas cis em uma sociedade sexista, que determina estereótipos rígidos para corpos serem legitimados como masculinos e, principalmente, femininos, o que necessariamente incorre em naturalização de perspectivas transfóbicas acerca dos corpos trans, a qual envolve objetificação sexual e negação do valor de afetividade para com pessoas trans.
João tentou ser mulher para tentar manter os privilégios que pessoas cis têm e escapar aos estigmas associados à população trans, fracassou. Sentia-se ridículo ou deslocado:
“– Seu castrado! – gritava, contorcendo-me todo. Ninguém melhor do que eu para poder dizer do doído que sentia, sem escamoteações. Precisava me enfrentar. Ver-me nu, com os defeitos ali expostos, sem escudos para conseguir combater a pusilanimidade que me tomava por completo. ‘– Vai, continue fantasiando, tapeando a si próprio por migalhas de aplausos. Jamais será uma mulher como as outras! Casar seria uma solução fácil. (…) E suportaria ser uma fêmea ardente? Teria orgulho de dizer que tinha um homem que a comeria todas as noites?’ (…) Onde meteria a sua inveja, o desejo de ser o próprio homem que viveria a seu lado?” (NERY, 2011).
Ser homem era inescapável, ao mesmo tempo, que indesejável para ele reproduzir os modelos tradicionalmente tóxicos de masculinidade. Em termos de relacionamentos afetivos, sofreu muito no começo da vida, teve questionada sistematicamente sua masculinidade, enquanto homem heterossexual, o que alimentou insatisfação com os seios que ainda portava, porém muito mais com a carência da maioria das mulheres por um homem com pênis.
Um ponto de encontro nosso, para além da identidade de gênero e gosto pela leitura, era a formação em Psicologia, que lhe trouxe uma boa qualidade de vida, dando aula em três faculdades e começado um Mestrado em Psicologia. Mas faltava algo àquele homem, que sentia falta de uma companheira e tinha plena ciência de que era visto com estranheza pelos outros professores.

Em uma viagem pela Europa se deparou, em uma livraria parisiense, com uma revista científica que detalhava cirurgias de redesignação genital para mulheres trans, ainda indisponíveis para homens trans, mas que lhe atiçaram a imaginação e a firme crença de que ele precisava mudar a sua identidade civil após uma cirurgia que retirasse do seu corpo marcas de feminilidade, para que sua masculinidade pudesse afirmar-se plenamente. A mudança da certidão de nascimento também era necessária. Precisou criar uma nova identidade e abandonar todo o passado como psicólogo. No entanto, a precariedade financeira decorrente dessa transformação corporal, social e psíquica pesava muito menos que o prazer de se encontrar em corpo, mente e espírito.
Fora do Rio de Janeiro, pouco se falava, mesmo dentro da comunidade trans, acerca do psicólogo que teve que fraudar a certidão de nascimento para poder viver com menos amarras a própria identidade, com isso perdendo direitos garantidos por meio da papelada fria que ignora, ou melhor, teme a chama da vida.
Ao longo dos seus 68 anos, João teve que abandonar o diploma e sobreviver como profissional liberal, dirigiu táxi, amou, confiou, casou, tornou-se pai, separou, foi enganado e, enfim, foi exaltado como escritor, por meio de sua obra, que mais do que apenas ser sobre a trajetória de uma pessoa trans, é uma escrevivência, no sentido dado por Conceição Evaristo, porque haure da invisibilidade por meio de sua escrita que parte de um sujeito coletivo, as vozes dos homens trans e pessoas transmasculinas, sem necessidade de intermediários cis para realizarem esse trabalho intelectual.
Isso gerava mais do que um mero incômodo, porque, sabendo que ele detestava esse tratamento, gente próxima fazia questão de ridicularizá-lo e entristecê-lo. Alimentava-se o sentimento de impotência pela falta do que faria os outros pararem de negar a sua existência como menino, com ele, a vergonha do próprio corpo:
“Sabia não possuir um pinto tão grande como o dos outros meninos da minha idade. Mas alimentava a esperança de que ainda crescesse. Deitava na cama e ficava puxando o meu pinto, para ver se aumentava. Ao acordar, a desilusão! Tudo continuava na mesma. Nenhuma fada apareceu. Nenhum milagre aconteceu” (Nery, 2011).
É angustiante estar no abismo entre como se sente e como as pessoas nos veem. Todo ser humano é único, porém a viagem solitária sobre a qual o meu amigo João W. Nery escreveu, sem encontrar pares ou reconhecimento, pesa mais, mas não deixamos de caminhar e ansiar por companhia: “Rejeitado e incompreendido, a sensação de amar sozinho foi se acumulando…” (Nery, 2011).
Viver a solidão, tentando torná-la mais saudável, na medida do possível, sempre foi uma experiência comum às pessoas trans, mesmo antes de haver denominações em diferentes culturas, ao longo da história da humanidade, e consensos científicos no século XX, acerca de nossa identidade de gênero. Isso devido ao fato de que ser homem, mulher ou pessoa não-binária é uma vivência única para cada sujeito, e a nossa experiência enquanto trans, até por ser menos comum, não é imediatamente “explicável” para a maioria que se identifica, sem maiores questionamentos, ao gênero que lhe foi atribuído ao nascimento: as pessoas cis.
Para mim, com todo respeito à amiga Sheila Salewski, companheira apaixonada por João, durante 22 anos de união conjugal, seu marido era um senhor garboso e atraente com inteligência e sagacidade desafiadoras que me reforçavam, como mulher trans e militante pelos direitos humanos, a noção de que ser uma intelectual, tendo a minha identidade de gênero, potencializava sobremaneira a minha contribuição para a minha comunidade e a sociedade em geral:
“Como escritor e ativista sigo na perspectiva de que minha experiência e meu testemunho possam colaborar para a “trans-formação” da subjetividade das novas gerações, construindo uma sociedade mais aberta, democrática e respeitosa aos direitos da diversidade, em que cada um, enfim, poderá ter a liberdade de dizer: ‘Eu sou o que eu quiser’”(Nery, 2017).
Quando lhe comentei, em 2013, que publicaria um livro sobre o pensamento transfeminista, ele me indagou: “E os homens trans? Eles precisam fazer parte do transfeminismo”!, concordei, porém retorqui que não era função das mulheres trans e travestis destacarem os homens trans nessa linha de pensamento e ação feminista e sim deles mesmos, ao produzirem intelectualmente e, a meu ver, contribuírem para a formação de novos modelos de masculinidade, menos tóxicos, que serão importantes também para os homens cis. Ele concordou. Convidei-lhe para escrever a contracapa do “Transfeminismo: Teorias e Práticas” (2014): “O transfeminismo é um feminismo ‘ousado’” (Jesus, 2014).
Anos depois, fui honrada pelo convite para escrever o prefácio do seu novo livro, Vidas Trans, escrito em parceria com grandes amigos em comum: Amara Moira, Márcia Rocha e Tarso Brant. O que mais me fascinou em sua nova escrita, era a constatação de que a sua viagem não era mais solitária, mas solidária, o que lhe animava, em um momento avançado da vida, e em estado de saúde fragilizada:
“Nunca imaginei que, ao lançar meu segundo livro (…), minha vida mudaria radicalmente, não deixando de ser um freak, uma aberração, mas permitindo uma repentina visibilidade de um segmento social quase desconhecido até então, os transhomens, que são as pessoas do gênero masculino, que ao nascer foram designados como femininos em função de seus órgãos genitais.
O compartilhamento da minha história possibilitou a muitas pessoas se identificarem comigo ou identificarem seus amigos e parentes, dentre outros”.
Entre experiências pessoais, não restritas à população trans e à cultura brasileira, o impacto da vida/obra de João inspirou, em 2013, a elaboração do Projeto de Lei Complementar de Identidade de Gênero, PLC 5.002/2013, que o homenageia, por iniciativa dos deputados federais Erika Kokay e Jean Wyllys.
No fim de 2016, fui convidada para desenvolver uma série de capacitações junto aos Estúdios Globo, que duraram até início de 2017, como forma de preparação do corpo técnico e artístico da emissora, e da comunidade em geral, para os debates acerca de gênero proporcionados pela novela A Força do Querer, de 2017, escrita por Glória Perez, que por meio do personagem Ivan, um homem trans, tratava de maneira inédita o tema do processo de reconhecimento da própria identidade trans e os percalços para a sua livre vivência. Esse trabalho me proporcionou a oportunidade ímpar de almoçar com a ilustre novelista e conversar com ela sobre a obra.
Permanentemente antenada com as transformações e tendências, Glória Perez também fora tocada pela autobiografia de João, que ela conhecia, desde os anos 80 (século XX), por meio do “Erro de pessoa”. Ao lhe perguntar o que a levara a tocar no tema da masculinidade trans, ela me confidenciou que pensou em tratar da identidade trans em sua novela De Corpo e Alma, do início dos anos 90, mas a intenção foi apontada como “engraçada” por um diretor da emissora e não seguiu em frente, até que ela observou um retorno do interesse popular pela questão, associada à visibilidade alcançada por “Viagem Solitária”, e desta vez foi possível veicular a telenovela.
O ano de 2018 foi paradigmático na história da população trans brasileira. Em 1º de março, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito fundamental de pessoas trans à autodeterminação de sua identidade de gênero, quando decidiu que pessoas trans poderiam retificar seus registros civis (nome e sexo nos documentos) diretamente nos cartórios, sem necessidade de cirurgia de transgenitalização ou de autorização judicial. Em setembro de 2018, João foi diagnosticado um câncer de pulmão. Essa notícia tenebrosa consternou toda a comunidade LGBTI+ brasileira.

João, persistentemente entusiasmado, mesmo o câncer tendo atingido o seu cérebro, sempre me falava do projeto de um filme sobre a sua vida, inclusive me repetiu essa proposta que estava sendo desenvolvida, quando o encontrei com a sua companheira na casa deles, em 23 de setembro de 2018, por oportunidade da Parada do Orgulho LGBTI+ de Niterói, na qual ele fez questão de estar presente. Nessa minha visita, ele me mostrou o manuscrito de “Velhice Transviada”, ressaltando sua urgência em concluí-lo antes de morrer, porque o seu trabalho final precisava “trazer as vozes de pessoas trans que conseguiram chegar à terceira idade”, como ele.
Meu ídolo, apoiador e amigo faleceu poucos dias depois, em 26 de outubro de 2018. Foi de uma tristeza devastadora acompanhar o velório e enterro no Cemitério do Caju, junto a familiares e amigos.
“Velhice Transviada” foi publicado em 2019. Desta feita, a dedicatória foi de Sheila:
“Para Jaque: Companheira amorosa de momentos inesquecíveis”.
Ao compor uma banca de Doutorado em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre identidades trans, citei o caso de João, que se formou em Psicologia naquela mesma universidade, mas que nunca teve reavido o seu diploma, com o seu nome, e propus que o Conselho Regional de Psicologia, cujo presidente estava presente na banca, pudesse entregar uma carteira profissional post mortem dele para a viúva, como uma homenagem póstuma, o que de fato ocorreu, no dia 29 de janeiro de 2020, em belíssima cerimônia transmitida virtualmente.
Outra homenagem significativa foi o título de Doutor Honoris Causa in memorian que a Universidade Federal de Mato Grosso concedeu-lhe em cerimônia realizada no dia 6 de dezembro de 2021. A honraria fora aprovada por unanimidade, em 4 de setembro de 2018, e estava prevista para ser entregue em 10 de dezembro do mesmo ano. Valeu a alegria de João por ter tomado conhecimento da titulação ainda em vida.
Sem qualquer femismo de minha parte, observo como é raro encontrar palavras de sabedoria, sem serem clichês, vindas de um homem, dado que o mundo que lhes cerca não exige muita elaboração acerca de suas posições de privilégio. Ser um homem trans obrigou João a se questionar desde a infância, a reinventar a masculinidade para se tornar vivível, e a reconhecer como o pensamento libertário e o feminismo promovem saúde mental e física não apenas para mulheres.
Encerro este textículo – o qual presumo que João provavelmente elogiaria, mas lamentaria as poucas páginas, porque ele preferia textos longos – com um de seus ensinamentos. Aprendamos com esse homem:
“Questionar o mundo à minha volta como não sendo único, rígido e cheio de cagação de regras foi de um alívio libertador”.
Autobiografia: Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ProfHistória/UFRRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da Fundação Oswaldo Cruz (PPGBIOS/Fiocruz).
Primeira gestora do Sistema de Cotas para Negros da UnB (2004-2008), foi presidenta da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura – ABETH (2021-2023). Autora e organizadora do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”, publicado em 2014 pela Metanoia Editora, primeiro em língua portuguesa sobre o tema. Homenageada em 2017 com a Medalha Chiquinha Gonzaga, por indicação da Vereadora Marielle Franco, e premiada em 2024 como pesquisadora destaque pela Brazil Conference at Harvard and MIT.