Maria Izabel e Maria Helena D’Iánsan, minhas avós ventanias

Autoria

Marta Ferreira D’Oxum

Sou de uma família com a marca da força das mulheres; elas sempre dominaram e deram o tom da educação e formação. E chamo atenção por estar falando das mulheres do lado materno da minha família, lado em que sempre estive mais próxima. Casadas, ou não, estando no município do Rio de Janeiro, subúrbio, trabalhavam com atividades ligadas às práticas domésticas: diaristas, lavadeiras, passadeiras, cozinheiras; prestação de serviços como: manicures, trabalho em fábricas como auxiliares de serviços gerais, cozinheiras, costureiras. O nível de escolaridade: baixo ou nenhum. 

Sempre estive ao lado delas, quando criança: avó, tias-avós, tias, tias de consideração (as que chegavam sem ter para onde ir e passavam um tempo até se estabelecerem). Lembro de acender cigarros, pegar café, colocar óleo de cozinha no recipiente de óleo secante para as unhas, acompanhar sessões de chapinha esquentada no fogo para esticar cabelo, henê passado manchando as unhas protegidas por sacos plásticos. Eram conversas sem fim regadas a café fraco, pois a escassez era gigante. Mas eu adorava observar o movimento das mãos falando junto, o barulho da chapinha literalmente fritando os fios de cabelo, o cheiro do henê e esmalte. As memórias dos assuntos são embaçadas na fumaça dos cigarros baratos, mas os cheiros são vivos… Mulheres do seu tempo (anos 1970), com suas formações e com pouca certeza da força que possuíam. 

E minha vó Maria Izabel, só Maria na certidão, mãe de minha mãe, era a senhora dona da casa, que seu marido, meu avô temia (dizia que tinha parte com o diabo, rsrs) porque determinava o que devia ser feito, indicava para empregos, não aceitava desaforo de patroas, dispensava visitas se estivesse cansada. Trabalhadora incansável.

Imagem 1 - mulher idosa, sorridente, com turbante branco cobrindo seu cabelo. veste um vestido branco com estampas bem pequenas em cores claras, na altura dos joelhos. Está sentada em um sofá de couro marrom escuro com as mãos sobrepostas em cima das coxas. Ao seu lado direito, sobre o sofá, há uma almofada bege com franjas brancas.
Vó Maria Izabel. Fonte: Acervo pessoal.

Minha vó Maria praticava um catolicismo próprio, organizado por suas intuições e passagens por outras religiosidades. Mantinha fé nas religiosidades que a cercavam, como nas umbandas e candomblés que minha mãe frequentava. E foi em uma dessas casas de candomblé (a que fui iniciada anos depois) onde minha mãe soube que minha avó Maria provavelmente era de Iánsan, caso fosse iniciada um dia. Ela quis saber quem era Iánsan, quando soube, ficou orgulhosa.

Lembro que sempre falei que seria professora e, aos 13 anos, morando em um conjunto habitacional na Avenida João XXIII, em Santa Cruz, Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, percebi que precisava trabalhar para ajudar, mesmo sem minha mãe pedir. Uma vizinha tinha um “jardim de infância” não legalizado e me chamou para ser auxiliar. Lembro de falar com minha mãe sobre a proposta e ela imediatamente chamar minha avó (que, nesse período, era viúva foi morar com minha tia caçula em uma casa perto de nós). Murmuraram algo como “Vai fazer a menina tomar conta da filha dela”, e sugeriram que eu desse aula em casa como “explicadora”, para eu organizar meu horário de forma que não atrapalhasse meus estudos. Minha vó ventania soprando o trabalho doméstico e a não prioridade nos estudos para longe. 

Minha vó ventania Maria, anos mais tarde, me vendo trabalhar como professora em uma escola (informal), se oferece para ajudar a pagar faculdade para eu fazer o curso de Pedagogia. Iniciei a graduação, uma amiga no curso me avisa de uma seleção para uma escola grande, passo no processo de seleção e já posso manter a faculdade. Epa hey Oyá, messan Órum! (Forma de saudação à orixá Iánsan – Senhora da guerra e dos 09 céus; tradução dos cotidianos do terreiro).

Inicio-me no candomblé após concluir as graduações de Pedagogia e História, e anos depois, me deparo com a memória ancestral de minha vó de santo, Maria Helena de Iánsan. Sou Yakekerê/mãe pequena na comunidade tradicional de terreiro Ile Asé Omi Lare ìyá Sagbá, onde a memória de vó Maria Helena é viva entre nós através dos ensinamentos deixados por ela – nas escritas deixadas por ela, e nas falas cotidianas do meu pai de santo Babá Daniel D’Yemonjá.

Imagem 2 - mulher branca, idosa, sentada em cadeira de palha coberta com pano branco bordado. Ela veste roupa de axé branca rendada  e turbante branco cobrindo o cabelo. está sentada com as mãos apoiadas em suas pernas. Usa óculos. Chão de revestido de cacos de azulejos marrons formando uma espécie de mosaico. em su lado esquerdo há uma planta e ao fundo quatro homens negros, um deles tocando atabaque.
Vó Maria Helena D’Iánsan. Fonte: Acervo pessoal.

Minha vó ventania Maria Helena me deu a base, as fontes e os caminhos a serem trilhados para minha constituição, formação e concepção do que eu compreendo e implemento enquanto mulher negra, periférica, candomblecista, professora/pesquisadora. Seus manuscritos, como a brisa quente da senhora das tardes cor de rosa/Iánsan, vêm me conduzindo por caminhos inesperados. Minha vó ventania Maria Helena de Iánsan, mulher forte, casou-se por imposição dos pais, separou-se logo depois e assumiu seu caminhar. Mulher de temperamento forte e impulsivo com um coração gigante. Quem a conheceu e teve contato relata sua alegria e espontaneidade, bem como suas paixões avassaladoras. Para nós, do terreiro que herdou seus ensinamentos, ela é viva a cada ritual realizado a partir de suas orientações deixadas, ou comentários de nosso Babá Daniel contando suas práticas cotidianas. As memórias e práticas ancestrais mantêm minha avó ventania Maria Helena D’Iánsan presente entre nós.

A menina “Martinha” que acendia cigarros das tias-avós (me viciei em golinhos de café e não no fumo, rsrs), que admirava, atenta aos movimentos das mulheres na e da casa, que sempre ouviu muitas histórias contadas por minha vó ventania Maria se encontra hoje com a adulta Marta Ferreira D’Oxum, Doutora em Educação a partir dos ensinamentos escritos deixados por minha vó ventania Maria Helena D’Iánsan. 

A partir dessas escritas, que denominei fontes tradicionais, desenvolvo pesquisas que se embasam em uma epistemologia de terreiro, onde saberes são forjados como Iánsan e Ogum o fazem nas tecnologias de fundição de metais. A metodologia utilizada segue o traçado da flexa de odé/caçador e todos os indícios apesentados em seus itans/histórias de orixás. A pesquisa elaborada como uma tese/ebó/oferenda, trazendo à tona toda teorização do terreiro que nem a força da lei consegue tirar da invisibilidade e silenciamento – fundamentação teórica ancestral.  Epa hey Oyá, messan Órum!

Minhas avós ventanias Marias, contadoras de histórias, cada uma à sua maneira – vó Maria contando casos da roça e histórias de família, vó Maria Helena D’Iánsan deixando itans/histórias de orixás por escrito, ventania de saberes na minha vida. Histórias que sempre deram o tom das caminhadas, das escolhas pessoais, profissionais. 

Não acredito em coincidências, então minhas avós ventanias Marias, filhas da senhora da tarde cor de rosa, Iánsan, serão sempre reverenciadas e referenciadas por mim, principalmente, quando o céu trouxer essa cor em si. E, nessa manhã fria, o arrepio que corre pelo meu corpo vem aquecido por esses acalentos ancestrais da brisa morna de minhas avós ventanias, carinho recebido e entendido com toda sua potência ancestral.

Epa hey Oyá, messan Órum!

Imagem 3 - paisagem de um entardecer: céu em tons de azul e rosa. plantas nas extremidades do plano da fotografia. no centro um telhado com dois potes pequenos e um uma espécie de jarra com plantas dentro ao meio.
Céu de Oyá Onira/Iánsan. Fonte: Luciana Serra

Autobiografia: Sou Doutora Marta Ferreira D’Oxum, mulher negra, candomblecista, filha de D. Sonia e D. Oxum, tendo D. Yemonjá como protetora; candomblecista desde sempre, pesquisadora em formação; historiadora por influência de minha vó Maria, a primeira que ouvi contar histórias.

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