Professora Coema Hemetério dos Santos: intelectual, mãe e mulher negra na cidade do Rio de Janeiro do século XX  

Autoria

Luara Santos

Conheci a professora Coema Hemetério, por volta de 2013, durante as pesquisas sobre a trajetória de seu pai, o professor Hemetério José dos Santos. Enquanto mergulhava fundo nas páginas dos jornais cariocas em busca da trajetória do primeiro professor negro do Colégio Militar, filólogo e docente da Escola Normal, localizei registros sobre a sua família. Uma família negra, letrada, formada por professores e funcionários da administração pública da cidade do Rio de Janeiro. Um grande achado para mim que, desde os primeiros períodos da graduação em História, buscava avidamente pelos registros das agências negras na cidade do Rio de Janeiro do imediato pós-abolição. A essa época, eu não queria falar sobre escravidão, me recusava a revisitar o doloroso lugar da submissão negra que me fora ensinado nos anos escolares do ensino fundamental. 

Localizar o professor Hemetério José, durante os tempos de escrita da monografia, anos antes do encontro com os demais membros da família, foi um marco importantíssimo em minha trajetória e a construção de vínculos com a história desse personagem foi avassaladora. “Conhecer” Coema, uma intelectual negra altiva – em tempos de mestrado, atravessada por desafios relacionados ao casamento, à maternidade, à sua profissão e aos desafios impostos pelo racismo e a opressão de gênero – foi outro marco significativo. Durante o doutorado, entre 2017 e 2022. À medida que eu localizava fontes históricas de diversas naturezas, descortinando aspectos da vida dessa mulher negra, eu me senti diante de um espelho: ela também teve que lidar com os desafios de equilibrar maternidade, vida doméstica e a profissão docente, além de lidar com o racismo de seu tempo. Coema, dentre tantas coincidências da vida, iniciou sua trajetória docente, em 1908, na mesma escola em que eu, 102 anos mais tarde, iniciaria minha trajetória docente na prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. 

Nascida em 20 de outubro de 1888, a menina Coema Hemetério dos Santos cresceu imersa no mundo das letras. Ela era filha e neta de professores, além de bisneta de ninguém menos que Francisco de Paula Brito, o renomado tipógrafo do Império e criador da imprensa negra no Brasil. Seguindo os mesmos caminhos dos pais, os professores Hemetério José dos Santos e Rufina Vaz dos Santos, Coema Hemetério atuou como docente do ensino primário em escolas públicas municipais – cargo ocupado majoritariamente por mulheres – e esteve à frente de uma das cadeiras de Língua Portuguesa no curso noturno da Escola Normal. Voltado à formação de outras educadoras, o Curso Normal era majoritariamente ocupado e administrado por docentes do sexo masculino. Através das páginas dos jornais da época, é possível acompanhar as turmas nas quais Coema atuou e com quais colegas dividiu essa regência.  A carreira de Coema também alçou outros espaços para além da sala de aula: assim como seu pai, ela atuou como colaboradora de alguns periódicos voltados ao ensino. Escreveu e se fez representar, assim como outras educadoras de seu tempo, nas páginas dos jornais e revistas pedagógicas que davam suporte teórico e metodológico a outros tantos docentes da capital e demais cidades do Brasil.

O nome Coema tem origem indígena e significa “o início da manhã” (ou “início do dia”), e a escolha feita por seus pais é bastante simbólica por marcar o início da família Hemetério dos Santos. O “início da manhã” dos Hemetério dos Santos, uma menina negra nascida na cidade do Rio de Janeiro, teve acesso à educação formal desde as primeiras letras e ingressou na Escola Normal em 1904. Nesse ano, ela cursou o 1° ano do Curso Diurno, sendo aprovada nas disciplinas de Francês (“com distinção”), Português (“plenamente”), Aritmética, Caligrafia, Ginástica, Trabalhos de Agulha, Trabalhos Manuais, Música, Geografia (somente na segunda chamada). Em 1905, aos dezessete anos, ela foi matriculada no 2° ano do Curso Noturno. Seguiu os estudos no período noturno até concluir o curso, em 1907, aos dezenove anos. Aos vinte anos, em 1908, a jovem Coema “foi aprovada com distinção no exame de prática escolar”. 

A trajetória escolar foi percorrida com relativo sucesso e acompanhada de perto pelo pai, professor de Língua Portuguesa da referida instituição no mesmo Curso Noturno. A opção por cursar a Escola Normal no período da noite indica que possivelmente ela já exercesse a profissão no período diurno, ou pode ter sido apenas uma opção familiar para que ela fosse seguida de perto pelo pai. A estreita relação entre pai e filha era ressaltada com frequência em publicações da imprensa, enfatizando as qualidades intelectuais da “herdeira” do “reputado professor”.

Imagem - duas páginas de caderno de ata com marcas do tempo. possuí manuscritos nas duas páginas. Na página da direita há o histórico da aluna Coema Hemetério dos Santos que diz:
“Nascida a 20 de outubro de 1898.
Natura do Distrito Federal.
1904 - Filha legítima de Hemetério José dos Santos e Rufina Vaz Carvalho dos Santos.
Apresentou certidão de idade, atestado de vacina e sanidade e diploma do 1º grau.
Matriculada no 1º ano do curso diurno , sob o nº 72. Na 1ª chamada foi aprovada com distinção em  Francês, plenamente em Português, aritmética, caligrafia, ginástica, T. de agulha, T. manuais e música e eliminada em geografia em cuja disciplina foi aprovada plenamente na 2ª chamada.
1905 - Matriculada no 2º ano do curso noturno , sob o nº 48. Na 1ª chamada foi aprovada com distinção em Português, História Geral e Trabalhos de Agulha, plenamente em francês, algebra, geografia, desenho linear e música e reprovada em geometria em cuja disciplina foi aprovada simplesmente na 2ª chamada .
1906 - Matriculada no curso noturno sob nº 54, em matérias do 3º ano . Na 1ª chamada foi aprovada com distinção em português, pedagogia e desenho de quarto, plenamente em francês e história da América, hípica e Trabalhos manuais e simplesmente em Ciência Natural. Não necessitou exames na 2ª chamada.
Historico Escolar Prof-Coema Hemeterio. Fonte: Arquivo pessoal

A casa onde a família Hemetério dos Santos residiu durante boa parte de suas vidas estava localizada no mesmo endereço onde funcionava a 7ª Escola Feminina do 5º Distrito, situada na Rua Barão de Ubá, n.º 21 (atual bairro da Tijuca). Eles não eram os proprietários da residência, pois o imóvel pertencia à administração pública municipal. Mas, diante da realidade da maioria esmagadora da população carioca que precisava pagar aluguel para ter um teto onde se abrigar, pode-se dizer que essa era uma situação mais confortável. Neste mesmo endereço, em 01 de abril de 1916, a professora Coema anunciava que ministraria o curso preparatório ao concurso da Escola Normal. A movimentada rotina de professora pública do ensino primário conjugava o exercício do magistério, a escrita e publicação de artigos didático-pedagógicos e a vida em família – que incluía marido e filho.  Atuando oficialmente na profissão, desde o ano de 1908, na função de “estagiária de 2ª classe” na Escola Modelo Gonçalves Dias (localizada no bairro de São Cristóvão), a professora completou sete anos de efetivo exercício, em 1915, e fez parte de um grupo de educadoras promovidas “por merecimento” à condição de “professora adjunta de 1ª classe”, enquanto outras estavam sendo promovidas “por antiguidade”. 

O levantamento realizado nos periódicos da Biblioteca Nacional nos remete a dezenas de referências à professora Coema Hemetério dos Santos Pacheco, indicando o exercício do magistério, até o início dos anos de 1960, quando ela já tinha mais de setenta anos de idade. Ela é o “início” e a continuidade de uma trajetória familiar de professores e funcionários da administração pública municipal que, de acordo com os padrões de seu tempo, construíram um legado que combinava boas qualidades profissionais, intelectuais e morais.  

A “herdeira natural” das qualidades do “reputado professor” carregava consigo a grande responsabilidade de fazer jus a esse renome, não desabonando em nada os esforços dos pais nessa construção de respeitabilidade. E como as demais mulheres negras de seu tempo, Coema encarava diariamente formas explícitas ou implícitas de racialização e sexualização das mulheres negras. Portanto, não bastava seguir a cartilha de moça exemplar também imposta às suas colegas, professoras brancas. Mais que isso, era preciso se adequar aos padrões morais de feminilidade e, ao mesmo tempo, driblar o racismo. Suspeito que diante dessa realidade tenha havido certo consenso familiar quanto ao protagonismo do patriarca negro, o “homem da família”. Diante das imposições sociais relacionadas à raça e ao gênero, é possível que a parceria intelectual entre pai e filha tenha sido minimizada e não levada ao público leitor. 

A associação entre ser mulher, ter um casamento e exercer a maternidade foi peça fundamental na construção das agências femininas, tanto no espaço privado quanto no público. Para a jovem Coema, não foi diferente, pois além das qualidades intelectuais e do renome, ela seguiu o roteiro comum às moças do mesmo círculo social, casando-se em 1910, aos vinte e dois anos. O matrimônio com Octavio Ferreira Pacheco, funcionário do Ministério da Agricultura, foi realizado, em 21 de outubro de 1910, no civil e no religioso, tendo por um dos padrinhos ninguém menos do que o General Pinheiro Machado, um dos políticos mais importantes e influentes da Primeira República. Além dessa figura ilustre, a cerimônia teve a presença dos “numerosos amigos que foram levar à sua residência os mais fervorosos votos de felicidade ao jovem par”. A maternidade se somou à vida de esposa e professora pública primária. 

Os dados biográficos levantados por mim permitem afirmar que a professora Coema Hemetério esteve perfeitamente alinhada aos modelos de feminilidade e respeitabilidade que vigoravam dentro e fora de seu círculo familiar. Um alinhamento que precisa ser problematizado à luz das relações raciais do período, e entendido para além de mero enquadramento às normas e modelos brancos. O comportamento exemplar expresso tanto na esfera pública quanto privada, alinhado à sua apresentação estética, transmitia mensagens que remetiam à beleza, pertencimento social de prestígio e, principalmente, rebatia os discursos médico-policiais da época que disseminavam visões estereotipadas acerca da população negra e, em especial, das mulheres negras. 

A professora Coema obteve êxito em sua trajetória profissional, o que serviu, também, como ratificação das boas qualidades da família negra como um todo, encabeçada pelo patriarca negro. Naquela sociedade recém-saída da escravidão, as qualidades intelectuais e comportamentais da moça expressaram narrativas positivas e afirmativas que contrastavam com o racismo científico de seu tempo. Enquanto alguns intelectuais brancos afirmavam de maneira categórica que as pessoas negras – e em especial as mulheres – eram sinônimos da “degenerescência”, de uma “sexualidade exacerbada” e patológica (sic), mulheres negras como a professora Coema respondiam vivendo e representando o completo oposto dessas concepções. 

O racismo expresso pelo chamado preconceito de cor atingia as mulheres negras de modo particular porque as associava diretamente à perspectiva de lascividade – alimentada desde os longínquos tempos da escravidão – utilizada como justificativa à violência sexual imposta às mulheres escravizadas. Desse modo, as trajetórias de Coema Hemetério e de outras professoras negras de seu tempo e de suas famílias foram pautadas – aberta ou silenciosamente – pela luta por reconhecimento de sua humanidade. Humanidade que se expressava por meio de sua intelectualidade e dos seus bons comportamentos. Nesses movimentos da vida cotidiana, Coema lançou mão de estratégias dentro do corolário de leis e normas estabelecidas pela normatividade branca – seja por concordância, por estratégia de sobrevivência ou ambos. Manter-se empregada e obter um cargo público – contribuindo para o sustento próprio e familiar – e a segurança da integridade física, eram fatores que dependiam diretamente da imagem pública apresentada ao longo da trajetória no magistério público primário.

A mãe do pequeno Hemetério (neto) foi professora pública, esposa e filha exemplar; foi também intelectual e mulher negra que buscou atuar ativamente na construção de sua trajetória, equilibrando expectativas de gênero e classe, padrões impostos pelo racismo e sexismo e os seus próprios anseios. Coema foi e segue sendo o “início da manhã” para os seus descendentes diretos que reconhecem em sua trajetória a humanidade que, por séculos, vem sendo negada pelo racismo. 

A professora Coema segue sendo uma bela e iluminada manhã para mim, professora e intelectual negra do século XXI, que ainda preciso lidar com questões muito semelhantes às que ela teve que enfrentar no seu tempo. Que ela possa ser farol e inspiração para outras tantas mulheres negras do tempo presente. 

Autobiografia: Luara Santos, mãe da Luíza Mahin, professora da Educação Básica nas redes municipais das cidades de Itaboraí e do Rio de Janeiro. Atua como professora de História no ensino regular e como alfabetizadora de jovens e adultos na EJA. É Doutora em História Social e Mestra em Relações Étnico-Raciais – tendo recebido apoio financeiro das agências de fomento CNPQ e Capes, respectivamente.

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