Plácida dos Santos: a artista que levou a música e a dança nacional para os palcos de Paris

Autoria

Juliana Pereira

Para qualquer criança que nasceu nas décadas de 1980 e 1990, a televisão tinha uma centralidade na vida cotidiana. Não só pelos programas infantis que se multiplicaram nessa época, ou pelos programas de auditório que reuniam as famílias nos fins de semana, mas, certamente, pelas novelas que, a cada ano, foram se tornando a paixão dos brasileiros. 

A novela era como uma vitrine. Ela era a interface entre os telespectadores e os artistas. Era ali que ficávamos sabendo dos cortes de cabelo, roupas da moda e os novos estilos. E por que não das novas gírias e assuntos do cotidiano? 

Mas era dali também que milhares de meninas não conseguiam se enxergar. As poucas artistas negras que conseguiram ganhar espaço, na maioria das vezes, presas aos clássicos estereótipos, não davam conta da sede de representação que essas meninas buscavam. Sim, a presença negra no entretenimento sempre foi marcada pelo não-lugar.

Eu, que nasci em 1991, me tornei uma noveleira de carteirinha. Sempre gostei de observar aquelas histórias de amor e intriga que terminavam em um final feliz e que me davam a sensação de que um dia também viveria essas histórias, esses encontros que tinham ótimas trilhas sonoras de fundo. Mas era interessante como o papel das protagonistas eram sempre feitos por mulheres brancas. Nós, crianças pretas da década de noventa, não nos víamos nas protagonistas. E, talvez, por isso é que tantas de nós, ao brincar, usávamos uma toalha ou lençol na cabeça fingindo que eram os longos cabelos como víamos nas protagonistas.

Houve um tempo, bem distante, em que a TV ainda não existia e o rádio também não. Um tempo em que a indústria fonográfica estava começando a se estabelecer, em que o teatro era o lugar em que as famílias iam em busca de diversão. Neste período, a modalidade “espetáculo de variedades” era o grande sucesso. Espetáculos que misturavam números musicais, acrobacias e comédias a preços populares se tornaram a grande aposta dos empresários. O teatro de revista diferente dos dramas permitiu que artistas de origens diversas fizessem carreira em seus palcos. E ali alguns poucos sujeitos negros conseguiram se inserir nesta modalidade. Evidente que esta presença era marcada, muitas vezes, pela inferiorização da população negra, mas, ainda assim, esses homens e mulheres, por dentro dessa lógica encontraram espaços de atuação.

Para as mulheres, existia a possibilidade de atuarem como atrizes e coristas ou ainda de terem carreiras apresentando números de canto e dança nos intervalos das peças. Esse foi o caso, por exemplo, da artista Plácida dos Santos

Plácida nasceu em Bagé, uma cidade do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o Uruguai. Não sabemos ao certo a data de seu nascimento, acredita-se que ela nasceu na década de 1860. Em 1877, a então jovem Plácida já se casaria na cidade do Rio de Janeiro e receberia o sobrenome “dos Santos” de seu marido Tito Franco dos Santos. Dessa união nasceu Zaika Carmen dos Santos, filha única do casal que não permaneceu junto por muitos anos em um período em que o divórcio não era uma possibilidade, mas a separação de corpos sim.Silenciada na historiografia dedicada à música e ao teatro, Plácida dos Santos foi uma dançarina e cantora de sucesso que felizmente foi eternizada pelos cronistas e memorialistas e foi assim que se deu nosso encontro. Além dela, encontrei outras mulheres negras que com seus corpos e suas vozes abriram caminho na indústria de entretenimento para o corpo negro.

Imagem 1 - fotografia antiga em preto e branco de uma mulher negra, com cabelos pretos enrolado preso em coque no topo da cabeça. usa um brinco oval com pedra branca no centro, vestido, aparentemente branco com gola presa ao pescoço e detalhes em cor escura
Plácida dos Santos. Fonte: Revista da Semana, 10 de março de 1901

Como ela mesmo fez questão de narrar em entrevista para o jornal A Noite, no ano de 1933 (quando ela tinha por volta de setenta anos), Plácida dos Santos teria sido a primeira brasileira a ir se apresentar em Paris, na França, dançando por lá o maxixe, a dança mais sensual e requebrada do período. Paris, nesse momento, já era a capital das artes, havia um grande interesse dos artistas da vanguarda parisiense em relação às diversas artes negras. Ouvir música negra ou dançá-la expressava um dos sinais da modernidade. 

Foi nesse cenário de efervescência cultural, que Plácida se apresentou. Ao chegar lá, os cartazes a anunciavam como uma “atriz crioula” e de acordo com a própria artista o público “supôs que ia ouvir uma negra, de grandes beiçolas”, mas ao chegar no palco, “a plateia deixou escapar um “‘– Oh!’ de admiração”. Demostrando uma autoestima elevada, a artista afirma ainda que recebeu vários aplausos pela sua apresentação. Ao se definir como uma mulher bonita, Plácida dos Santos revolucionava a minha própria vivência como mulher negra. Crescemos acreditando que não somos belas, que estamos distantes desse lugar. E se definir publicamente como lindas que somos, olhar para nossa imagem com um “– Oh!” de admiração precisa ser um exercício cotidiano.

Plácida voltou para o Brasil com dinheiro suficiente para sustentar toda a família. Ela afirmava que o trabalho no teatro foi uma oportunidade para “viver honestamente”, após a falta de “sorte no primeiro matrimônio”.  De fato, ser atriz permitia às mulheres uma pequena liberdade e independência que não eram usuais à época. As atrizes poderiam, por exemplo, frequentar os espaços públicos, viajar juntamente com as trupes e cuidar do próprio dinheiro. Mas, ao mesmo tempo, a frequente associação com o trabalho da prostituição fazia com que as artistas fossem alvo constante de preconceitos.

Plácida dos Santos tinha uma vida noturna ativa, era uma mulher festiva. Frequentadora dos bailes do Clube dos Democráticos, a artista tinha uma rede de relações grande. Em sua casa na Lapa, estava sempre rodeada de amigos e ali realizava festas regadas a música e dança. Seu trineto Alexandre Roberto Gualter Bastos afirma que Plácida gostava de jogar baralho cigano e que nas reuniões que dava em sua casa sempre tinham um espaço para o jogo. Seu posicionamento não passava desapercebido por colunistas, que a consideravam uma mulher boêmia. E sempre sugeriam que a vida amorosa de Plácida dos Santos era movimentada.

Em seu repertório musical, estavam vários lundus e modinhas “apimentados” além de composições de Chiquinha Gonzaga, outra mulher que quebrou padrões no universo musical. Embora fosse elogiada como cantora, Plácida não fez qualquer gravação das canções de seu repertório. Mas conseguiu estampar uma capa de partitura para piano, o que era uma exceção para mulheres como ela.

Ainda hoje, mulheres artistas lidam com vários preconceitos como o etarismo, por exemplo. A chegada da velhice diminui os convites e contratos de trabalho, levando muitas mulheres ao esquecimento. Assim, foi também com Plácida dos Santos que, aos 70 anos tinha que se sustentar lecionando francês para jovens cariocas.

Imagem 2 - recorte de jornal em preto e branco. mulher negra idosa, com cabelo solto crspo branco, usando vestido de cor escura e com estampa de flores em tom claro, ela está de pé, levemente inclinada para a direita, com a mão direita apoiada em um parapeito. No fundo há várias plantas compondo o segundo plano.
Plácida dos Santos aos 70 anos. A Noite, 12 de abril de 1933.

A trajetória de Plácida dos Santos mostra assim que mesmo com tantas dificuldades e dentro do um disputado mercado de diversões, mulheres negras já lutavam por respeitabilidade e por inserção nesses espaços desde muito tempo. A tentativa de silenciamento e apagamento dessa artista não foi bem sucedida, pois afinal ela parece ter escolhido a dedo quem deveria falar sobre sua trajetória. Os seus passos abriram os caminhos para maior representatividade de artistas negras que hoje estão na televisão e no teatro. Sua carreira evidencia que a luta por autonomia de mulheres não precisava passar necessariamente por movimentos feministas institucionalizados. Mulheres negras acionaram variadas ferramentas para lutarem por cidadania e reconhecimento. Olhar para Plácida dos Santos e para as artistas negras de hoje é ter a certeza de que os “nossos passos vêm de longe”!

Autobiografia: Juliana Pereira: Petropolitana, Flamenguista, doutora em História, fã de novelas brasileiras e mexicanas e adora um cafezinho coado.

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