Monteiro Lopes: o protagonismo negro na política

Autoria

Petrônio Domingues

Idos de 2004, eu consultava periódicos no acervo da Biblioteca Nacional, centro do Rio de Janeiro, para a minha tese de doutorado, que desenvolvia no Programa de Pós-Graduação em História da USP. Pesquisava a temática do associativismo negro e, nessa época, não existia a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. A consulta aos periódicos ali era realizada presencialmente, por meio das leitoras de microfilmes. Ao fitar um jornal de 1910, deparei-me com uma reportagem sobre um tal de Monteiro Lopes, cuja narrativa era racializada e carregada na tinta do sensacionalismo. Fiquei intrigado: afinal, quem era esse sujeito? Como a reportagem destoava do assunto do meu doutorado, anotei a referência da fonte e prometi para mim mesmo: “um dia eu irei ao encalço desse Monteiro Lopes”. Dito e feito. Defendi minha tese em 2005. Cerca de três anos depois, voltei à Biblioteca Nacional e escarafunchei os periódicos do Rio de Janeiro no início do século XX, o que me permitiu encontrar peças do quebra cabeça da história que narrarei doravante.

Manoel da Motta Monteiro Lopes nasceu na cidade do Recife, Estado de Pernambuco, em 25 de dezembro de 1867. Filho de um casal negro – seu pai Jerônimo da Motta Monteiro Lopes era alfaiate e sua mãe Maria Francisca Egiphicíaca de Paula Lopes, comerciante –, tinha quatro irmãos. Fez sua formação escolar no Ginásio Pernambucano; depois, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, período no qual abraçou a bandeira do abolicionismo e da causa republicana. Tornando-se bacharel em Direito, em 1889, tentou se estabelecer profissionalmente em sua cidade natal, onde, em 1891, concorreu ao cargo de intendente do Conselho Municipal – cargo correspondente hoje ao de vereador, sem sucesso. Passou pelo Pará e se mudou para Manaus, capital do Estado do Amazonas, onde foi nomeado promotor público e abriu banca de advocacia. 

Monteiro Lopes está de perfil, em pé, segurando um guarda chuva, de frente para outro homem. Atrás dele, em segundo plano, seis outros homens observam a cena.
Monteiro Lopes. Fonte: Careta, 10/04/1909

Sua passagem pelo Norte do país foi efêmera. Em 1892, ele se transferiu para o Rio de Janeiro, a cidade mais pujante da jovem República, que atraía milhares de migrantes e imigrantes. Todos em busca de um “lugar ao sol”, com direito a trabalho, iniciativas empreendedoras e novas oportunidades na vida. A abolição da escravatura e a Proclamação da República com todas as expectativas que geravam e, também, com todos os desafios que implicavam, projetou essa imensa população a uma nova realidade. 

Ao chegar à Capital Federal, Monteiro Lopes dedicou-se à advocacia e, aos poucos, foi conquistando clientela e reconhecimento profissional. O Rio selou uma nova fase em sua vida. Pudera! Maior polo econômico, social, político e cultural, a cidade era o proscênio do poder, símbolo de progresso e civilização; cartão postal da nação. Por outro lado, a cidade era marcada pela heterogeneidade – com pessoas de diferentes regiões, nacionalidades, cores, religiões, hábitos e tradições culturais – e, sobretudo, repleta de injustiças e contradições. Sensível a essas questões, Lopes passou a se posicionar no debate público, bem como se enfronhou nas lides do associativismo e nos canais propulsores de empoderamento. Aproximou-se da Sociedade União dos Homens de Cor, ingressou na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos – onde estabeleceu laços com José do Patrocínio, de quem se tornou “discípulo” –, afiliou-se à maçonaria, teceu alianças com os trabalhadores do Centro Internacional Operário e iniciou militância político-partidária. 

Lopes procurava ficar em sintonia com as novas correntes político-ideológicas, do Brasil e do mundo. Em 1903, lançou sua candidatura, tendo sido eleito para o cargo de intendente municipal do Distrito Federal, mandato que se caracterizou pela “atitude em prol do operariado das fábricas”, “humildes servidores da Municipalidade” e “classes pouco favorecidas”. Ao término do mandato, entre 1903-1904, ele tentou a reeleição como intendente municipal, mas malogrou. Pleiteou então uma vaga como Deputado Federal em 1905. Embora sua votação não tivesse sido inexpressiva, saiu derrotado. Quatro anos depois, lançou novamente sua candidatura à Câmara Federal. Desta vez, o resultado foi outro, porém se viu envolvido em uma polêmica. 

De acordo com a legislação da época, a eleição para deputados precisava ser reconhecida pela Comissão de Verificação de Poderes, que costumava diplomar apenas os candidatos pertencentes aos grupos políticos que dominavam o poder. A imprensa passou a noticiar as articulações de bastidores, que ocorriam no sentido de impedir a diplomação de Lopes por causa de sua cor, o que provocou uma reação de setores populares e, sobretudo, de “pessoas de cor” de vários estados – como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul, que agenciaram uma ampla campanha em prol da posse do político afro-brasileiro.

Ao final, Lopes foi diplomado, tendo sido o primeiro representante da população negra a chegar ao parlamento da República articulando um discurso de afirmação racial e em defesa dos direitos sociais. Para um país que ainda não se desvencilhara do recente passado escravista, a conquista de Lopes foi algo significativo, razão pela qual ele se tornou, para muitos negros, uma referência de sucesso, uma fonte de orgulho, admiração e inspiração. 

No primeiro discurso ocupando a tribuna da Câmara, Lopes vinculava o seu nome “às classes laboriosas”, manifestando sua preocupação com a vida dos “menos favorecidos da fortuna”. No parlamento federal, colocou o seu mandato a serviço da discussão das questões sociais e dos direitos dos trabalhadores, em uma época em que isso não era comum. Seu mandato, entretanto, foi precipitado, pois o político afro-brasileiro faleceu, no dia 13 de dezembro de 1910, vitimado pelas complicações decorrentes do diabetes. 

A notícia de sua morte foi sentida no Congresso Nacional, de modo que a sessão legislativa do dia 13 foi encerrada após o “elogio fúnebre” de alguns deputados. Seu falecimento causou espanto na “boa sociedade”. Já no interior da “comunidade negra”, a notícia provocou forte consternação. A Federação Paulista dos Homens de Cor, por exemplo, divulgou nota pública, declarando suas condolências pelo passamento do “ilustre patrício”. Seu enterro foi concorrido, comparecendo representantes dos mais diversos segmentos do Estado e da sociedade civil. 

Paralelamente à sua atuação na esfera política, Lopes dedicou-se à literatura e ao jornalismo. Teria escrito os romances O crime de Vanderbilt (1886) e A dama de sangue (1889-1890), além de poesias e artigos publicados em jornais de Recife, Manaus e Rio de Janeiro. Teria, ainda, sido o fundador e colaborador do Brasil Ilustrado, revista editada no Rio de Janeiro entre 1904 e 1905. 

O finado deixou viúva, Ana Zulmira Monteiro Lopes, e um filho, Aristides Gomes, então aluno do Colégio Militar.

Não deve ter sido fácil para um negro retinto, em plena era do racismo científico e das teorias do branqueamento nas Américas, sair da cidade de Recife, no final do século XIX, para incursionar pela região Norte e, em seguida, migrar para se projetar no Rio de Janeiro, o mais pulsante centro cosmopolita do país. Não foi uma tarefa fácil porque o Brasil acabara de sair da escravidão e o “preconceito de cor” da Belle Époque nem sempre era cordial, haja vista o que ocorreu com ele próprio. Mesmo transitando em vários ambientes (irmandade religiosa, maçonaria, agremiações partidárias, jornais, clubes, gabinetes, fóruns) e dominando a gramática da “boa sociedade”, Lopes chegou a receber um tratamento desrespeitoso. Mesmo com o status de advogado e parlamentar, ele colecionou dissabores relacionados à sua cor. 

Figura popular no Rio de Janeiro, da primeira década do século XX, Lopes foi tema de troças carnavalescas, de peças teatrais e atraiu os olhares de vários cronistas. Luís Edmundo define-o como sendo o “leader da raça negra, suando reivindicações, a falar sempre muito alto, a gesticular como se estivesse discursando”. Já para Afonso Arinos Filho, Lopes era uma “figura notável”; o primeiro deputado, que inaugurou, em sua campanha de 1909, a “batalha pela libertação econômica e racial dos negros”; foi o “pioneiro da raça no Brasil”. 

Apesar de os admiradores terem se esforçado para preservar a memória de Lopes e este ter sido objeto da atenção da opinião pública, seu nome caiu no esquecimento, inclusive das sucessivas gerações de ativistas afro-brasileiros. No atual contexto de discussão sobre a história e cultura afro-brasileira, é oportuno tirar Lopes do limbo, registrando a sua trajetória, especialmente, de seu êxito político, em 1909, quando foi eleito e reconhecido deputado federal pela Capital Federal. 

Por fim, vale salientar que Monteiro Lopes desconstrói com alguns dos estereótipos associados às pessoas negras nas primeiras décadas do pós-Abolição. Longe da imagem de bestialidade, rudeza, analfabetismo, subalternidade, sua trajetória indica como alguns afro-brasileiros foram articulados e versáteis e, nos limites do possível, apropriaram-se da retórica republicana de cidadania e igualdade para fazer valer seus projetos, anseios e ideais; conquistar ou ampliar direitos e redefinir sua posição na sociedade.

Autobiografia: Sou doutor em História e professor da UFS; apaixonado pela sala de aula, pela pesquisa histórica e por livros – na minha biblioteca reúno cerca de 5 mil. 

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