Era dia de São João e todos estavam animados para os festejos em comemoração à data vinculada ao calendário católico. Uma bela lua cheia ansiosa por iluminar a todos e completar a festa. Nos idos de 1970, as festas juninas eram muito populares no estado do Rio de Janeiro e nas cidades da região metropolitana, assim como em Nova Iguaçu. Os balões, hoje vistos como uma ameaça, antes encontravam espaço para a poesia, para a sua beleza efêmera, como um astro que brilha no céu escuro ao ser aceso, como um ponto de luz, encantando os olhares. Eu, quando criança, ainda tive a oportunidade de viver o que foi o fim de uma era. Quando as crianças ficavam acordadas até tarde para ver os balões. Quando se dormia ao som daquelas músicas típicas das festas juninas. Eu era apenas um garoto e ainda não podia sair, mas aquelas notas musicais ao longe, nunca saíram da minha cabeça. Eu me sentava no muro baixo e largo da minha casa, feito de forma improvisada pelo meu pai e, de lá, eu contava todos os balões que conseguia ver. E, já cansado, dormia, imaginando como eram aquelas festas tão animadas e, ao mesmo tempo, tão melancólicas. Algo em mim, dizia que era o som de algo já quase perdido. As mudanças culturais, o crescimento das cidades apagariam as luzes daquelas festas, deixando para trás as noites de São João.
As lembranças das fogueiras, o cheiro da madeira queimando e aquecendo as noites frias de junho, as batatas-doces feitas nas brasas incandescentes, as quadrilhas, as bandeirinhas e tudo mais que a memória pode alcançar tornaram-se as últimas lembranças de Enéas Pereira Belém. Visto que foi numa tarde fria, de uma quarta feira, 24 de junho de 1970, às 14h, em seu próprio domicílio, na cidade de Nova Iguaçu, que Enéas realizava o seu último e derradeiro ato: a morte.
Despedia-se, assim, dos seus onze filhos e netos, aos 81 anos de idade. Exatamente três dias após a final da Copa do Mundo de 1970, realizada no México, outra referência importante para pensarmos a sua trajetória de vida. Pois, Enéas, em sua juventude, foi um amante dos esportes. Fundou, em 1932, a Associação Iguassuana de Esportes e teve também como uma de suas últimas memórias, a conquista do tricampeonato da seleção brasileira, considerada a maior de todas as seleções do mundo. Não podemos afirmar se Enéas viu aquela que foi a primeira transmissão em cores de uma final de copa do mundo em uma tevezinha em preto e branco, ou se apenas ouviu, por um radinho, os quatro a um contra a Itália. E foi Pelé, aos dezoito minutos do primeiro tempo, quem abriu o placar que consagraria aquela seleção para sempre.
Eu nunca fui ligado ao mundo futebolístico, minhas primeiras memórias sobre uma copa do mundo foram as de 1990. Lembro as ruas desertas, as pessoas gritando e eu sozinho, na rua, olhando novamente os balões, as bandeirinhas em verde a amarelo, o silêncio rompido com os gritos de gol. Fico imaginando o que deve ter significado para o vô Toné, como era carinhosamente chamado Enéas, o tricampeonato da seleção canarinho.
Antiperipléia
Enéas acordou cedo, estava animado, o ano era 1932, e “após longos e intermináveis preparativos, foi finalmente fundada, em Nova Iguaçu, a Associação Iguassuana de Esportes” que já contava com 5 clubes filiados e as perspectivas eram as melhores. Acordou, tomou café com sua família, despediu-se da sua esposa, que o olhou com orgulho e, foi trabalhar no que ele mais gostava. Por morar próximo, caminhou pelas ruas do centro da cidade em direção ao Clube Esportivo Filhos de Iguaçu.
Atuava como treinador do Filhos de Iguaçu e dava preferência para os jogadores da região, apesar de o clube não fazer discriminação, segundo um dos seus netos. Filhos de Iguaçu, era um clube de pessoas mais humildes e se tornava um clube carnavalesco durantes os festejos de momo, com bailes sempre muito animados. Wilsomar, um dos seus netos, afirmou ser um processo natural os clubes de futebol, durante o carnaval, servirem de espaços para os bailes. Podemos concluir que isso demonstra uma segregação nos espaços de lazer da cidade. Já que outros clubes recebiam pessoas de famílias mais abastadas. E, como frisou Wilsomar, um clube composto por pessoas pobres e, acrescento, pessoas pretas.
O Filhos de Iguaçu servia como um espaço de congregação esportiva e, também, como um local para a sociabilidade daquela população pobre que vivia em Nova Iguaçu, na primeira metade do século XX, período conhecido na historiografia como pós-abolição. Enéas era um homem negro, como podemos verificar em fotos cedidas por seu neto, José Araújo, apesar de em sua certidão de óbito constar como “pardo”. Uma mudança de cor nos documentos associada ao status social que assumiu ao longo de sua vida, sinônimo de ascensão social.
Quem foi Enéas Pereira Belém e por que contar a sua história é importante?
É fundamental o leitor ter em mente que nosso objetivo é pensar o que significava para um homem negro, na primeira metade do século XX, ter uma posição de destaque no cenário social de Nova Iguaçu, uma cidade na região metropolitana do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense. Que outras famílias negras ocupavam espaços parecidos com os ocupados por Enéas e sua família?
Quando se pensa na cidade de Nova Iguaçu, no início do século XX, a laranja é a maior referência. Mas, não é possível reduzir a cidade apenas ao cultivo desta fruta que, inegavelmente, projetou o município internacionalmente e movimentou fortemente a sua economia. A família Pereira Belém é uma boa oportunidade para olharmos aquele lugar por outras lentes que não a da agricultura de exportação.
Enéas Pereira Belém, no momento do seu falecimento, deixava em vida, onze filhos e filhas e nenhum deles está, ao que tudo indica e, também, segundo o que consta no inventário aberto em 1971, ligado à cultura da laranja que tanto é associada àquele município. Eles são descritos como funcionários públicos ou como “prendas domésticas”, no caso das mulheres. Podemos observar que o auge da laranja foi nos anos de 1930, portanto, no momento do seu falecimento, já não era mais a principal atividade econômica da cidade. Mas, em nenhum momento da vida familiar dos Pereira Belém, aparece qualquer referência ao trabalho no cultivo de laranjas.
Durante a minha pesquisa de doutorado pude acompanhar a trajetória da família de Enéas Pereira Belém durante três gerações. Desde o nascimento do seu pai, João Pereira Belém, no início da segunda metade do século XIX, até as trajetórias de parte dos seus filhos com sua esposa Durvalina já no final da primeira metade do século XX. E me chamou muita atenção o fato de a família ter seguido o caminho do funcionalismo público como forma de ascensão e estabilização social de uma família pobre e negra na Baixada Fluminense. Até hoje, a população mais pobre vê no serviço público uma possibilidade de ter uma vida menos instável e uma velhice mais segura. Eu cresci ouvindo isso como um mantra familiar do qual não fui capaz de seguir, mas que me assombra até hoje.
Autobiografia: Filho de seu João e dona Helena, irmão de William, Jaline Márcio e Vinicius, gonçalense, sambista desde criança, artista das artes cênicas e doutor em história pela UFRRJ.