O Griô do meu torrão: Djalma Sabiá

Autoria

Mauro Cordeiro

Era uma noite de quinta-feira e o Acadêmicos do Salgueiro realizaria, entre o Natal e o Ano Novo, mais um ensaio de preparação ao carnaval vindouro. Porém, o que tornou aquela noite memorável foi uma cerimônia ritual que aconteceu na quadra e antecedeu o tradicional ensaio de rua da vermelho e branco. Uma das mais belas páginas da gloriosa história do Salgueiro foi escrita naquele 27 de dezembro de 2018 e eu, integrante apaixonado e fervoroso da Academia, pude testemunhar emocionado o ato em que o senhor Djalma de Oliveira Costa tomou posse do cargo de Presidente de Honra do Salgueiro. Era a consagração daquele senhor negro, esguio e que alguns anos antes havia me recebido em sua casa na Tijuca onde, por horas a fio, compartilhou de forma generosa memórias de momentos marcantes da agremiação.

Seu Djalma mantinha em sua casa, em uma vila na Tijuca, um espaço especial dedicado à exibição de um acervo que construiu ao longo de toda vida. Recortes de matérias de jornais e revistas, flâmulas, bandeiras e diferentes objetos compunham o cenário de um imponente museu particular. Durante anos, o Sabiá recebia jornalistas, pesquisadores e interessados em geral e, neste contexto, tive o privilégio de fazer uma visita e durante uma manhã ouvir daquele senhor quase centenário histórias ausentes da bibliografia do samba carioca com a lucidez e a firmeza de quem as vivenciou.

Na noite de sua consagração a quadra não estava cheia e aquele evento de inestimável valor simbólico e tão significativo como forma de homenagear e reconhecer a importância do sambista, na época o único fundador vivo, passou quase desapercebido em um calendário permeado de eventos comerciais. Embora tenha sido divulgado pela escola, não atraiu o interesse dos milhares de componentes de sua comunidade. O público presente restringia-se a membros da Diretoria, lideranças de segmentos, amigos e familiares do baluarte e a imprensa carnavalesca. Entre os convidados, algumas presenças ilustres que, inclusive, formaram a mesa composta para a solenidade como o radialista Adelzon Alves, o compositor Aluísio Machado, o pesquisador e produtor cultural Haroldo Costa, o jornalista e compositor Rubem Confete e, por fim, o compositor e, na época, Presidente de Honra da Estação Primeira de Mangueira, madrinha do Salgueiro, Nelson Sargento.

Imagem 1 - Cerimônia de posse de Djalma Sabiá como Presidente de Honra do Acadêmicos do Salgueiro. Ele está centrado no centro de uma grande mesa com uma toalha branca que está dentro da quadra do Salgueiro, em frente ao palco. Atrás aparece o nome da escola em um grande letreiro em neon vermelho. NO palco onde está o letreiro há uma bandeira da escola, alguns equipamentos de captação de audio.
Cerimônia de posse de Djalma Sabiá como Presidente de Honra do Acadêmicos do Salgueiro. Fonte: Site do Salgueiro.

Djalma de Oliveira Costa nasceu em 13 de maio de 1927, data em que a assinatura da Lei Áurea completava 39 anos. Vivenciou o processo histórico de afirmação do samba no pós- abolição e escreveu seu nome no pantheon de glória do carnaval carioca. Das dificuldades enfrentadas pelas comunidades negras para manifestação da sua arte e cultura, sobretudo no espaço público, naquele Brasil da Primeira República até a conquista da hegemonia do carnaval através das escolas de samba e a transformação do samba em símbolo nacional um longo e controverso caminho foi percorrido. Este percurso pode se iluminar através da trajetória e biografia dos sambistas.

Sua mãe, Alzira de Oliveira Costa, desfilou como porta-estandarte no primeiro título da Unidos da Tijuca em 1936, um ano após a oficialização do desfile das escolas de samba pelo poder público. Ainda na adolescência, Sabiá era figura frequente nos ensaios da Unidos da Tijuca, agremiação mais próxima de sua casa. O interesse pelo samba foi crescendo e o jovem Djalma começou a frequentar diversas outras escolas da região, inclusive as três agremiações que existiam no morro do Salgueiro antes do processo de unificação. Embora tenha desfilado pela Azul e Branco e pela Unidos, firmou-se como componente da Depois eu Digo quando se mudou em definitivo para o morro do Salgueiro.

O apelido Sabiá é oriundo dos tempos em que desfilava seu talento no futebol amador. Conta a lenda que um dia, em uma pelada, o treinador da equipe oponente instruiu seus atletas a agredirem aquele defensor com pernas de sabiá, fazendo referência a Djalma que se destacava na partida ao impedir os avanços do ataque adversário. O caso virou motivo de grande brincadeira sobre as pernas finas de Djalma e a alcunha foi incorporada primeiro como apelido e depois como nome artístico.

Em março de 1953, quando uma articulação improvável mobilizou os sambistas pela união das escolas do morro do Salgueiro, Djalma foi figura importante. Na época já acumulava experiência e demonstrava o perfil de liderança que lhe valeria o apelido de prefeitinho do Salgueiro. Na escola que fundou, desempenhou inúmeros papéis em diferentes contextos. Foi o primeiro intérprete da agremiação ainda na década de 1950 e notabilizou-se como um exímio compositor, autor de alguns dos mais belos sambas da discografia da escola. De sua primeira vitória em 1956 até a última, em 1976, emplacou seis sambas-enredo, em parceria (1956, 1957, 1958, 1959 e 1964) ou solo (1976). Para além disso, exerceu o cargo de diretor de carnaval em 1987. Membro da primeira diretoria, participou ativamente da vida social e política da agremiação, tendo sido, inclusive, candidato a vice-presidente em eleições gerais.

Um artista popular, um líder comunitário e articulador social. Crítico contumaz do processo de mercantilização do desfile das escolas de samba, manteve-se como uma voz ativa na escola contra o afastamento das suas raízes e, de forma ampliada, do próprio samba. Neste sentido, o ato de colecionar artigos referentes à memória do Salgueiro era uma iniciativa de Djalma Sabiá com o intuito de salvaguardar a tradição. Sem formação acadêmica, costumava se classificar como um historiador e antropólogo autodidata. Compreendendo a memória como um campo de disputa, Djalma Sabiá era um agente interessado na memória do Salgueiro em torno de valores fundamentais que, em sua visão, estavam se perdendo.

Imagem 2 - Seu Djalma Sabiá em destaque no carro Abre-Alas do Salgueiro no desfile de 2014.  Ele veste um terno branco com detalhes em vermelho, veste também em baixo do terno uma camisa branca com listras vermelhas. Está sentado em um grande trono que remete ao continente africano.
Seu Djalma Sabiá em destaque no carro Abre-Alas do Salgueiro no desfile de 2014. Foto: Fernando Maia | Agência Brasil

Djalma Sabiá não era simplesmente um guardião da memória salgueirense; ele era o seu artífice. Através da construção de sentidos do passado que vivenciou, Sabiá revelou a verdadeira essência do Salgueiro. Este processo criativo da memória em vermelho e branco ultrapassa os nove títulos, as transformações e os carnavalescos aclamados. O Salgueiro de Sabiá é o dos artistas anônimos que, embora não estejam em evidência, permanecem vivos nas histórias carinhosamente narradas por ele ao longo dos anos. É o Salgueiro da harmonia de um morro que já encantava a cidade com sua musicalidade, suas festividades e sua religiosidade, atraindo visitantes e eternizando-se nos carnavais. No fundo, é o Salgueiro que se realiza na vivência cotidiana e no compartilhamento constante, e é apenas através dessa
prática que pode ser verdadeiramente entendido, um griô.

Aquela noite de 27 de dezembro de 2018, terminou com a escola fazendo seu aquecimento para o ensaio com o mais emblemático dentre os sambas da autoria do Presidente de Honra. Para o carnaval de 1964, Sabiá e os parceiros Binha e Geraldo Babão, compuseram Chico Rei, eleito o melhor samba da história do carnaval carioca por Martinho da Vila. A saga de um Rei negro africano escravizado em seu território de origem, comercializado ao Brasil e que trabalhou para comprar sua alforria e libertar seus irmãos é uma das histórias de personagens negros que o carnaval trouxe para o debate público através da arte de gênios populares como Djalma Sabiá.

Sabiá descansou em novembro de 2020, ano marcado pela pandemia de Covid-19. Em seus últimos anos de vida, desfilava como grande destaque do Salgueiro sendo constantemente reverenciado pela comunidade na área da concentração. Após a sua morte, a escola lançou o Sabiá, um novo mascote oficial que eterniza a figura de Djalma e sua importância. No primeiro desfile após sua passagem, com o enredo Resistência em 2022, uma imensa escultura de seu Djalma no carro Abre-Alas o representava como um griô, contando as novas gerações a história da agremiação que ajudou a erguer. Como um grande ancestral, o griô é eterno. Enquanto houver Salgueiro, produto direto da contribuição de seu Djalma, nosso baluarte viverá.

Autobiografia: Vascaíno e Salgueirense. Nascido no Andaraí e criado em Brás de Pina, um suburbano dos melhores dias. Sambista devotado aos Acadêmicos do Salgueiro. Doutorando em Antropologia na UFRJ e Professor do Departamento de Sociologia do Colégio Pedro II.

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