Força Ancestral: A Vida e a Luta de Mam’etu Sia Vanju

Autoria

Fabíola de Souza

Conheci Mam’etu Sia Vanju, Mam’etu Ia N’kissi do Centro Espírita Omariô de Jurema, em 2008, durante a sagrada Reza de Nzazi e, desde então, minha vida mudou profundamente. No Omariô de Jurema, fui suspensa por Nsumbu como Kota Ia NZazi em 2010 e confirmei meu santo em 2013. Como mãe amorosa, ela nos acolhe, e sua habilidade em transmitir conhecimento é extraordinária. Sinto-me privilegiada por aprender com ela, por compartilhar momentos de crescimento espiritual e por fazer parte de uma comunidade onde o carinho e a tradição caminham juntos, sempre sob a proteção e o cuidado de Mam’etu Siá Vanju.

Esses anos de convivência me permitiram conhecer de perto a grandeza de sua história e a profundidade de seu compromisso com a preservação das tradições afro-brasileiras. Patrícia Cristina de Freitas, a quem temos a honra de chamar de Mam’etu Siá Vanju, não é apenas uma guardiã das práticas ancestrais, mas também uma mulher de força, coragem, resistência, resiliência e compaixão que tocou muitas vidas. Nesta biografia, convido você a conhecer mais sobre essa mulher extraordinária, sua trajetória espiritual e pessoal, e o legado que ela constrói a cada dia. 

Patrícia Cristina de Freitas, mais conhecida como Mam’etu Sia Vanju, é uma importante sacerdotisa do Candomblé e uma figura central na preservação das tradições afro-brasileiras no sul do estado do Rio de Janeiro. Nascida em 6 de outubro de 1958, na cidade de Barra Mansa, Patrícia cresceu em uma família humilde, mas cercada de muito afeto e valores morais sólidos, transmitidos por seus pais, Maria Aparecida de Freitas e Geraldo de Freitas. Sua infância, vivida com seus irmãos, Diana Mara, Telma e André Luiz, foi marcada por carinho, disciplina e a importância da educação e do trabalho duro, apesar das condições econômicas limitadas. 

Patrícia nasceu em uma família de origens variadas: seu pai, mineiro, foi criado no interior do Rio de Janeiro, enquanto sua mãe, paulista, cresceu em Lavras no estado de Minas Gerais e de lá trouxe muitas referências. Desde cedo, Patrícia e seus três irmãos tiveram uma convivência próxima com a vida ferroviária, já que sua mãe trabalhava na estação de Barra Mansa, que se tornou o quintal onde as crianças brincavam e interagiam com a comunidade. A cozinha de sua casa também foi influenciada por seu pai, que era chefe de cozinha, criando um ambiente familiar onde a comida e a tradição se misturavam de forma natural e afetiva.

Desde cedo, Patrícia Cristina de Freitas foi profundamente imersa no universo espiritual e cultural das religiões afro-brasileiras. Sua mãe, foi católica e muito atuante na religião. Contudo alguns acontecimentos a levaram para a Umbanda, mais especificamente, para o Terreiro de Umbanda Xangô Agodô, conduzido por Mãe Mariinha. Maria Aparecida, ficou nessa casa por muito tempo e dedicou-se a criar Patrícia e seus irmãos dentro dessa casa, um espaço que não apenas moldou sua espiritualidade, mas também influenciou profundamente sua visão de mundo e seus valores. No terreiro, Patrícia aprendeu desde pequena a importância da hierarquia, do respeito aos mais velhos e dos rituais sagrados que conectam os praticantes às suas raízes ancestrais. Esses valores não eram apenas ensinados, mas vividos e experimentados diariamente, integrando-se à própria essência de sua identidade.

Embora Patrícia tenha, em certos momentos de sua vida, explorado outras expressões religiosas, como a Igreja Católica, visto ter estudado em um internato de freiras no município de Andrelândia-MG. A atração pelo catolicismo se apresentava pela admiração pela sua estrutura e pela intensidade de suas práticas, contudo, foi no terreiro que ela encontrou seu verdadeiro lar espiritual. A profundidade e a riqueza das tradições afro-brasileiras, com suas músicas, danças, oferendas e rituais, falavam diretamente à sua alma, oferecendo-lhe uma conexão direta com seus ancestrais e uma compreensão profunda de seu lugar no mundo.

A vivência no terreiro foi um elemento central em sua formação, mas Patrícia sempre manteve um equilíbrio entre o sagrado e o profano. Enquanto mergulhava nas práticas religiosas, ela também participou ativamente de outros aspectos da vida cotidiana, como a educação formal e o esporte. Essa dualidade permitiu que ela navegasse por diferentes esferas da vida com naturalidade, sem que a espiritualidade interferisse em sua inserção social e cultural. Patrícia foi uma estudante dedicada e uma atleta apaixonada, demonstrando que o envolvimento profundo com a espiritualidade não precisa ser excludente, mas pode, ao contrário, enriquecer a vivência nas mais diversas áreas da vida. Participou ativamente da luta política no Brasil, inclusive, esteve presente no Comício da Candelária, que foi uma importante manifestação política que ocorreu, em 10 de abril de 1984, em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Esse evento fez parte do movimento das Diretas Já e contou com cerca de um milhão de pessoas.

Essa integração harmoniosa entre o sagrado e o profano fortaleceu em Patrícia uma visão ampla e inclusiva do mundo. No terreiro, ela não apenas aprendeu sobre os mistérios do sagrado, mas também internalizou valores fundamentais como a empatia, o respeito às diferenças e a importância de uma comunidade coesa. Esses princípios guiariam toda a sua trajetória de vida, desde sua juventude até seu papel como Mam’etu, tornando-a uma líder religiosa profundamente conectada com sua comunidade e com o mundo ao seu redor.

Em 1975, Patrícia foi iniciada no Candomblé, no Centro Espírita Omariô de Jurema, casa fundada por sua mãe Maria Aparecida de Freitas, Mam’etu Iraê Jinkaiá. Patrícia e suas irmãs Diana Mara e Telma foram iniciadas por Mam’etu Liceuy, também conhecida como Mãe Toinha do Ilê Axé Oxossi Airá de Ilhéus, Bahia. Nessa ocasião, Patrícia recebeu o nome ancestral Siá Vanju e, juntamente com suas irmãs consanguíneas, e agora de santo, começou a trilhar o caminho que a levaria à liderança religiosa. 

Em 1977, Patrícia se casou com José Geraldo Dias, um homem que também compartilhava de suas crenças. Juntos, tiveram três filhos: André Luiz, Gabriel e Clarissa, que cresceram imersos na espiritualidade e nos valores que sua mãe e família materna tanto prezavam.

André Luiz, o primogênito, nasceu em janeiro de 1978. Desde jovem, ele seguiu os passos de sua mãe, sendo confirmado Tata Kambono, em 2001, e recebendo o nome ancestral de Amunanji. Já o segundo filho, Gabriel, veio ao mundo em janeiro de 1980. Seguindo o caminho espiritual da família, ele também foi confirmado como Tata Kambono, mas, em 1998, recebendo o nome ancestral de Kisanje. E sua última filha, Clarissa, nasceu em setembro de 1981. Em 2003, ela foi confirmada como Kota, recebendo a dijina de Kayanibô, consolidando seu papel dentro da comunidade religiosa. Seus filhos refletiram o legado da mãe, mostrando o quanto a fé e a tradição eram partes inseparáveis de sua identidade. Patrícia e José Geraldo se separaram logo após o nascimento de Clarissa. Siá Vanjú criou seus filhos sozinha, enfrentando inúmeras situações adversas. Elaborando, em alguns momentos, estratégias lúdicas para enganar a fome de seus filhos. 

Após a morte de sua mãe e dirigente do Omariô de Jurema, Mam’etu Iraê Jinkayá, em 1996, dois anos depois, Patrícia assumiu a liderança da casa, seguindo as orientações dos oráculos e dos mais velhos. Essa transição ocorreu de forma natural e orgânica, consolidando-a como a nova Mam’etu de N’kisi.

Como líder religiosa, Mam’etu Siá Vanju tem desempenhado um papel crucial na preservação e promoção das tradições do Candomblé. Sob sua liderança, o Omariô de Jurema continuou a ser um espaço de acolhimento, desenvolvimento humano e promoção cultural. Siá Vanju trabalha pela união da sua comunidade e luta pela salvaguarda da memória, da ancestralidade e das tradições do povo de terreiro e patrimônio cultural fluminense. Ao longo dos anos, a família religiosa Omariô de Jurema foi se desenvolvendo e hoje possui aproximadamente 200 filhos de santos, que ultrapassam o domínio local, estendendo-se entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. 

Mam’etu Siá Vanju é também a dirigente espiritual da Tenda Espírita Pai Cambinda, instituição fundada, em 1950, em Barra Mansa. Seu trabalho e dedicação à resistência religiosa e cultural têm sido amplamente reconhecidos. Ela recebeu várias homenagens, incluindo o Prêmio Melhores do Ano na categoria Melhor Projeto Cidadão, o Prêmio Dandara e Zumbi pela preservação da memória ancestral, e o Prêmio Griô – Casas de Matriz Africana, em reconhecimento à sua atuação na transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral.

Mam’etu Siá Vanju vê as religiões afro-brasileiras como fundamentais na resistência e preservação cultural, especialmente, o contexto do pós-abolição. Para ela, os terreiros são espaços de transformação, acolhimento, empatia e autoconhecimento, onde a luta e a resistência são constantes. Ela acredita firmemente no poder da educação e da hierarquia dentro da religião, e vê na juventude a esperança para o futuro das tradições afro-brasileiras.

Ao longo de sua trajetória, Mam’etu Sia Vanju enfrentou muitos desafios, desde o racismo e a discriminação até as complexidades de liderar uma comunidade religiosa diversa. É uma voz poderosa em prol da valorização da história e da cultura afro-brasileira, especialmente, o que diz respeito ao papel vital das mulheres negras e dos terreiros na formação da sociedade brasileira. Sua história é um testemunho de resistência, fé e dedicação e seu legado certamente continuará a inspirar futuras gerações.

Em suas próprias palavras, “– Se tivesse mil vidas, viveria todas como uma mulher negra e candomblecista, sempre com a certeza de que o futuro é logo ali, e que a força do estudo e da fé são essenciais para a construção de um mundo melhor”.

Autobiografia: Fabíola Amaral Tomé de Souza, sou barra-mansense e filha do Omir e da Carminha. Madrinha da Bibi, Gaia e Kito e agora vó madrinha do João. Tutora da Akila e do Zeca (sim. Akila em homenagem ao filme). Casada com o Pedro. Kota Ia N’Zazi do Centro Espírita Omariô de Jurema e umbandista da Tenda Espírita Pai Cambinda. Professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e do Centro Universitário de Volta Redonda – UniFOA e doutora em História pela UFRRJ. 

um projeto

_crop_poeira-historia-rosa

realização