Professor Paulo Silva é o nome da escola municipal onde eu fiz todo o antigo ginásio, onde estudei da quinta até a oitava série do Ensino Fundamental, entre os anos de 1986 e 1989, lá na comunidade do Benjamin, localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. O que ninguém sabia por lá, naquela época, é que o nome da escola havia sido dado em função da grande notoriedade que nosso Paulo Silva obteve como um dos mais importantes músicos da História do Brasil. Você já ouviu falar sobre o grande maestro e professor Paulo Silva?
Mesmo que você não seja fã de música erudita, imagino que você conheça um pouco, ou ao menos tenha ouvido falar sobre outro maestro, o Villa-Lobos (1887-1959). Ele e Paulo Silva foram amigos e admiradores um do trabalho do outro. De certa forma, foi a fama do Villa-Lobos que me fez chegar à história do nosso Paulo Silva. Explico melhor: no ano de 2001, eu fazia o curso de licenciatura em História e a minha professora, da época, a querida Ana Maria Monteiro, passou um trabalho, para o qual eu teria que escrever um relatório de visitas a uma escola pública. Pensei então em realizar um encontro com o meu passado, fazendo a visita à minha antiga escola dos tempos de “ginásio”, a Escola Municipal Prof. Paulo Silva. Mas por que o nome da escola era Professor Paulo Silva? Eu tinha estudado lá durante quatro anos e não tinha a mínima ideia. Aliás, ninguém sabia a razão da escolha desse nome para a escola, nem a diretora, nem os professores, ninguém. Aí entra o Villa-Lobos na minha história. Enquanto eu estudava História na UFRJ, também fiz concurso e me tornei aluno do curso de violão na Escola de Música Villa-Lobos, uma escola pública no Centro do Rio de Janeiro. Graças a essa formação musical, durante alguns anos atuei como músico e, no ano de 2000, precisei fazer a prova para me registrar e obter a carteirinha da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Então, quando escrevia o relatório em 2001, lembrei que, após fazer a prova da OMB, logo na saída da sala da prova, observei na parede um quadro de homenagem “ao grande maestro Paulo Silva”, um homem negro, com uma postura altiva, bem ao lado de outro quadro em homenagem ao famoso maestro Villa-Lobos. Seria o mesmo Paulo Silva que dava nome à escola municipal?
Como eu sabia que o Villa-Lobos era muito importante para a música brasileira e tinha uma escola com seu nome, onde eu também havia estudado, fiquei com aquela imagem na cabeça, daquele homem negro, maestro como o Villa-Lobos e que, ao menos na OMB, parecia ser tão respeitado quanto ele. Fui então à biblioteca da Escola de Música Villa-Lobos e encontrei na Enciclopédia Brasileira de Música um verbete sobre o Paulo Silva, afirmando que ele teria sido, em vida, muito respeitado no cenário musical brasileiro e até no exterior. Depois, na pesquisa para o que se tornou a minha monografia de graduação em História, sobre a vida e a obra do Paulo Silva, defendida, em 2002, na UFRJ, encontrei até mesmo o Projeto de Lei n° 877/81, com as justificativas do vereador Gelson Ortiz Sampaio falando sobre a “dedicação invulgar, a competência deste grande mestre no ensino de música em nosso país”, e a publicação do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, de 26 de outubro de 1982, com a Lei n° 364, de 21 de outubro de 1982, autorizando o “Poder Executivo a dar o nome de Professor Paulo Silva a um estabelecimento de ensino no Município do Rio de Janeiro”. Nome de uma escola pública, homenageado pela Ordem dos Músicos do Brasil.
Descobri depois que Paulo Silva também dava nome a duas ruas, uma na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro, e outra na cidade de Nova Friburgo. Que motivos levariam esse homem, tão respeitado e admirado em sua época, ao esquecimento na sociedade brasileira? Por que nem mesmo a direção e os professores da Escola Municipal Prof. Paulo Silva e, provavelmente, as pessoas que passam cotidianamente nas ruas “Maestro Paulo Silva” nada sabiam a respeito do nosso personagem histórico? Fica a pergunta. Afinal, ele não era jogador de futebol e nem músico popular. Não ocupava lugares sociais vistos, digamos, como “aceitáveis” para personalidades negras no Brasil.
O fato é que Paulo Silva, nascido, em 1 de janeiro de 1892, em uma família muito pobre no interior do estado do Rio de Janeiro, menos de quatro anos após a abolição da escravidão, foi um dos mais importantes músicos eruditos na História do Brasil, formou toda uma geração de músicos populares e eruditos, como Tom Jobim, Paulo Moura e Eleazar de Carvalho. Era reconhecido como um dos maiores músicos da América do Sul, segundo jornais da época. Aliás, Paulo Silva aparecia muito nos jornais! Através da pesquisa realizada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encontrei 303 reportagens publicadas em jornais nas quais foram encontradas menções ao músico, maestro e professor Paulo Silva, entre 1910 e 1969, dois anos após a sua morte, na cidade do Rio de Janeiro.
Mesmo assim, tão famoso em sua época, nosso Paulo Silva, como toda pessoa negra brasileira no pós-abolição, teve que lidar com o racismo de maneira muito objetiva. Em 1921, por concurso público, foi nomeado livre docente de Harmonia no Instituto Nacional de Música, que passou a se chamar, em 1937, Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, e atualmente é a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas em 1925, houve uma reviravolta na vida do Paulo Silva em função de um caso de racismo explícito no INM: Paulo Silva deveria ser nomeado professor titular da cadeira de Harmonia, em função do falecimento do ocupante da cadeira em 1925. Além de estar previsto no Regulamento do Instituto, essa também era a praxe na instituição, em casos como este. Entretanto, durante o governo do presidente Arthur Bernardes, o ministro da Justiça e Negócios Interiores, João Luiz Alves, que tinha a prerrogativa de nomear os funcionários das instituições federais, agindo contra a expectativa da ampla maioria dos alunos e professores do Instituto, nomeou outra pessoa para a vaga, uma pessoa que, à época, ainda era um jovem aluno, Oscar Lourenço Ferreira, “coincidentemente” um homem branco.
Esse episódio marcou profundamente a vida do Paulo Silva e, também, marcou a história do INM. O caso ficou muito conhecido e repercutiu dentro e fora do Instituto, inclusive em função de uma série de reportagens publicadas, entre janeiro e março de 1927, no jornal A Rua, escritas pelo professor do Instituto B. Constant, Luiz Candido de Figueiredo, evidenciando que se tratava de um caso de racismo. Muito impactado com o caso explícito de racismo, ainda em 1925, Paulo Silva passou a estudar no Colégio Pedro II e, em 1929, na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, atual UFRJ, onde formou-se, em 1932, como bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Segundo sua carta autobiográfica, escrita em 1949, Paulo Silva deu aulas de Harmonia Elementar e Superior no INM, entre 1922 e 1924, e posteriormente, de 1931 a 1938. Em 1932, ele foi contratado para dar aulas de Contraponto e Fuga no INM. Por sua carta autobiográfica e outras fontes consultadas, sabemos que após o caso de racismo por ele sofrido no INM, em 1925, Paulo Silva resolveu se afastar do prestigioso Instituto. Foi só, em 1931, na gestão de Luciano Gallet, como Diretor do INM, em 1931, que Paulo Silva voltou a dar aulas no INM. Alunos do Instituto chegaram a assinar um documento reivindicatório, dirigido ao Ministro, pedindo a sua volta ao INM.
A ajuda de Luciano Gallet teria sido muito importante para a volta de Paulo Silva ao INM em 1931. A mudança de seu status como professor no Instituto, através da aprovação no concurso público para a vaga de Professor Catedrático de Contraponto e Fuga, porém, somente foi possível, em 1935, após outra polêmica, esta ocorrida em 1934, e divulgada nos jornais da época. Em uma reportagem do jornal Diário Carioca de 3 de maio de 1934, ficamos sabendo que o Conselho Universitário da Universidade do Brasil, a partir da indicação de um membro do Conselho, que era professor de Medicina, resolveu nomear o pianista João Octaviano Gonçalves como livre-docente da cadeira de Contraponto e Fuga. A nomeação, no entanto, seria ilegal segundo a reportagem do Diario Carioca, que nos informou que, pelo artigo 326 do Decreto 19.852, então em vigor, a nomeação de professores para o INM caberia ao “Conselho Technico Administrativo” do próprio INM, composto por músicos do Instituto, que eram contrários à nomeação do referido pianista. A reportagem informava ao leitor que, naquele momento, o professor Paulo Silva era o professor de Contraponto e Fuga que seria afastado do INM para que o pianista nomeado assumisse a cadeira: “O professor que se quer afastar é o maestro Paulo Silva, cujo nome goza de invejável conceito nos meios musicaes e fora delle. Como technico, publicou um tratado de Harmonia e outro de Contraponto, que mereceram honrosos pareceres da comissão do Instituto encarregada de examinal-os.” (Diario Carioca, 3/05/1934) O texto da reportagem informava ainda ao leitor que os dois livros escritos por Paulo Silva, um deles sobre Contraponto, a disciplina em questão, eram adotados no INM e nos Conservatórios de São Paulo e de Minas Gerais! Naquele momento, em 1934, Paulo Silva já era um professor famoso e respeitado também como autor de importantes livros, que rapidamente se tornaram referências para cursos de Música no Brasil e no exterior. Seu livro intitulado Manual de Harmonia foi publicado em 1932 e o seu livro Curso de Contraponto foi publicado em 1933. Naquela época, Paulo Silva já recebia homenagens públicas, em jornais, nos quais eram exaltadas suas qualidades como professor, em geral, no dia 22 de novembro, celebrado como Dia do Músico, como as que podemos observar abaixo:
Finalmente, após a pressão de professores e alunos do INM, o concurso de provas e títulos para a vaga de professor catedrático de Contraponto e Fuga teve início em abril de 1935. Paulo Silva acabou recebendo duas homenagens: ninguém mais se apresentou como candidato, nem mesmo o pianista que chegou a ser nomeado para a cadeira, pelo Conselho Universitário da Universidade do Brasil, no ano anterior; e a banca examinadora, composta por alguns dos mais importantes músicos da época, Francisco Braga, Agnelo França, Samuel Arcanjo, Artur Pereira e Sílvio Deolindo Fróes, o aprovou por unanimidade, dando-lhe a nota máxima. Logo após o concurso, Paulo Silva finalmente foi nomeado professor catedrático de Contraponto e Fuga. Cargo que exerceu até se aposentar e se tornar Professor Emérito da atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua fama, no entanto, não se restringia ao mundo da música erudita. Sérgio Cabral, o jornalista que escreveu a biografia de Pixinguinha (1897-1973), contou em seu livro que Pixinguinha, considerado por muitos um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos, teria procurado o famoso professor Paulo Silva, “interessado em aprofundar-se mais nos segredos da harmonia musical”. O próprio Pixinguinha contou em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS) que foi aluno do Paulo Silva e colega de turma de Eleazar de Carvalho, um dos mais famosos alunos de Paulo Silva.
Por tudo isso, posso afirmar sem dúvidas que Paulo Silva definitivamente é um dos mais importantes músicos da história do Brasil. E para finalizar este breve texto, que é uma versão muito sintética do livro Paulo Silva: um contraponto na relações raciais no Brasil, que publiquei em 2021 pela EDUFF, diante de uma trajetória tão difícil e vitoriosa, ao mesmo tempo, eu diria que “a música da vida” de Paulo Silva foi em tom maior, com variações constantes e ritmos alternados, altos e baixos, mas sempre com uma seriedade serena e uma força marcante. Vale a pena conhecer melhor a música da vida do maestro e professor Paulo Silva!
Autobiografia: Sou músico, hoje só amador, flamenguista praticante e professor antirracista formando professores e pesquisadores na UFRJ.