Fui uma criança de favela, numa época em que a coletividade era experimentada na forma de redes familiares que promoviam acolhimento, ajuda em momentos de necessidade e seus lazeres. Minhas memórias de infância são povoadas por reuniões para fazer manutenção dos barracos de madeira e estuque, puxar a luz ou a água clandestina para casa, acudir as crianças no único cômodo que a água da chuva não alcançara etc. Embora a escassez fosse presença constante nos nossos cotidianos, a festa em forma de pequenos lazeres também fazia-se presente, a folia de reis que visitava a casa de Dona Maria Preta, as festas juninas com a mesa coletiva de comidas, fogueira e muito forró que fez-se em silêncio para a instalação do televisor na rua, para assistirmos todos juntos o lançamento da nova música com clipe de Michal Jackson “Thriller”, a transformação do homem em lobisomem que assustou a todos, principalmente a criançada!
O momento de preparação para a festa era de imenso entusiasmo da criançada, decorar a rua, imaginar as brincadeiras, as comidas……!
O carnaval não era diferente, era aquela mobilização, comprar “fazendas” para fazer fantasias, todas as crianças de baianinhas e baianinhos verdes brilhantes, com colares…. samba enredo tocando nas rádios o dia todo. O papo dos mais velhos, “- A Mocidade vem quente, Seu Castor está investindo tudo”; “- Vai é dar Salgueiro.”. E no dia dos desfiles o aparelho de TV, preciosidade de poucas famílias locais, ganhava lugar de destaque no quintal de Dona Luíza ou no de Seu Mário, que recebiam todo o pessoal para assistir os desfiles das escolas de samba, regado a muita comida…. Eu ficava encantada, lutando contra o sono para assistir as escolas passarem. Encantamento de criança que carrego até hoje e faço de ofício de historiadora, pesquisadora da história social da cultura, das escolas de samba e do samba no Rio de Janeiro.
O fascínio de criança promoveu o encontro com aquela que seria minha escola de samba do coração, não pela proximidade geográfica, mas pelo toque de seus agogôs que me arrebata a ser verde branco imperial. O toque da bateria do GRES Império Serrano, do morro da Serrinha, em Madureira, é como um chamamento que me emociona. Sua história, com a força das mulheres do morro da Serrinha, me remete as minhas memórias afetivas de criança negra que cresceu em favela do Rio de Janeiro, em um tempo em que as famílias estendidas promoviam lazeres que deram forma às escolas de samba no Rio de Janeiro.
Foi pelo toque do agogô que me encontrei também com as mulheres da Serrinha, imperianas de fé, que em seus laços familiares promoviam lazeres e foram as bases para a fundação do Império Serrano. Em especial as mulheres da família Oliveira, um dos ramos familiares fundadores da escola de samba em 1947. As filhas de Dona Etelvina de Oliveira e Seu Zacarias, ativos promotores de lazeres no morro, seguiram seus passos e estiveram presentes nos jongos, blocos, escolas de samba e tantos outros encontros em que suas portas foram abertas para a alegria e a diversão. Foram essas mulheres e tantas outras, secundarizadas por quem escreveu a história social do samba, que abriram suas casas, emprestaram seus quintais, saberes, fazeres e corporalidades para a construção de ritmos, sociabilidades que deram origem às escolas de samba cariocas.
Eulália do Nascimento, sobrenome adquirido pelo casamento, foi uma das filhas de Dona Etelvina Oliveira que herdou de sua mãe a casa em festa. Tia Eulália vive nas memórias do morro da Serrinha como quem abriu, assim como suas irmãs, as portas de sua casa para as primeiras reuniões de fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, e teria ainda doado o terreno de sua família para a primeira sede da agremiação.
Tia Eulália no morro da Serrinha. Fonte: Centro Cultural Tia Eulália
Das nove filhas e filhos de Dona Etelvina de Oliveira, Eulália foi uma das que migrou com seus pais da região do Vale do Rio Paraíba do Sul para o morro da Serrinha, nas primeiras décadas do pós-abolição. Nas relações cotidianas matrigestou potências que a fez conhecida entre os bambas de seu tempo como Tia Eulália, com “T” maiúsculo. Uma mulher, que abria as portas de sua casa para receber sua comunidade, preservando, ressignificando e criando tradições que são os fundamentos da cultura afrocarioca, gestadas nos quintais suburbanos. Ela foi imortalizada em sambas como “Meu Lugar” de Arlindo Cruz em sua famosa ode a Madureira, com o verso: “Quem não viu Tia Eulália Dançar?”.
Como ela mesmo dizia foi a número 1 do Império Serrano, numa época em que os desfiles das escolas de samba eram produzidos pelas comunidades. Tia Eulália ficou conhecida por definir temas, elaborar fantasias, adereços a serem levados para os desfiles e mesmo as alegorias dos primeiros anos da agremiação. Perto do carnaval ela era vista passando pelas casas das mulheres encarregadas de costurar os trajes e planejando a organização de toda a escola com cada um. Tia Eulália tinha um papel de liderança na união da comunidade para a construção dos desfiles da agremiação. Hoje em dia acumularia os papeis do que seria uma carnavalesca e equipe de carnaval.
Nas memórias locais a ala coordenada diretamente por Tia Eulália era organizada de forma misteriosa, não por acaso era chamada de a “ala das secretas”, na qual nem as componentes podiam ver as fantasias antes do desfile. As medidas eram tiradas e os ajustes eram feitos com as sambistas vendadas e somente no momento do desfile é que os trajes eram apresentados, causando sempre um grande impacto pela criatividade, beleza e luxo. Foi o tempo do Império rico, do tetracampeonato logo após sua fundação, um feito que surpreendeu o mundo do carnaval da época.
Ela era conhecida também por seu temperamento forte, uma mulher que tinha opinião, sobretudo a respeito dos rumos que a escola de samba deveria tomar. Nos ensaios da escola era ela, junto com o Mestre Fuleiro, quem organizava onde cada um deveria ficar. Segundo as memórias de seus contemporâneos eram mulheres de um lado e homens de outro, ela passava cantando o samba e sinalizando que esperava o mesmo dos componentes.
Houve um tempo que a escolha dos sambas passava pelas pastoras, que tinham papel importante como cantoras que seguravam a cabeça dos sambas na avenida. Se elas gostassem do samba, ou se sentissem que funcionava, o compositor ganhava uma torcida forte a seu favor. Embora Tia Eulália não assumisse esse posto no Império Serrano, ela era procurada por compositores como Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola que apresentavam suas músicas antes da apresentação na quadra. Era o reconhecimento de sua experiência anterior como pastora do “Caprichosos da Estopa” da fábrica do mesmo material na Praça da Bandeira onde trabalhou, e sua importância como aliada nas decisões da agremiação.
Tia Eulália. Fonte: Centro Cultural Tia Eulália
Tia Eulália contava que sua mãe Dona Etelvina dizia que se ela morresse perto do carnaval, que não era para eles deixarem de sair no Império. Os sentidos do desejo de Dona Etelvina transmitem o tipo de ensinamento e valor que o grupo de pessoas negras de um morro do subúrbio do Rio de Janeiro atribuía à escola de samba criada por eles. A dedicação e o cuidado que a comunidade reservava aos lazeres, a escola de samba, tem a ver com os movimentos de criação de espaços de cidadania. O direito ao lazer e, sobretudo, das formas que eram experimentados foi uma luta e conquista para o povo negro. Sair às ruas, com suas comunidades e mostrar seu valor estético, ritmos e organização foi um importante movimento de construção de discursos de empoderamento irradiados pelos blocos e escolas de samba do Rio de Janeiro.
Foi pelos ensinamentos de sua mãe, que Tia Eulália viveu os sentidos das conquistas de se autorrepresentar em comunidade, por meio de sua escola de samba de coração. Desfilou seu último carnaval pelo Império Serrano em 2005, já com seus 96 anos, mas sua história continua viva nas memórias da comunidade, em nós, imperianos, no maior espetáculo da cultura afrocarioca, na Terra!
Salve Tia Eulália!
Autobiografia: Filha de Dona Clarisse, mãe do João, imperiana de coração, professora e historiadora por profissão.